Sri Lanka: um novo capítulo na revolução

“Presidente de tendência marxista ganha as eleições do Sri Lanka”. Foi assim que a imprensa internacional anunciou o resultado das eleições presidenciais do país no último fim de semana. As manchetes estão incorretas, mas os fatos são impressionantes por si só.

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Pela primeira vez, um partido fora do duopólio que domina o Sri Lanka desde a independência em 1948 assumiu a presidência. Todas as velhas políticas, partidos e dinastias, todos os velhos bandidos e sanguessugas que sugaram o Sri Lanka por 76 anos estavam na cédula de votação e as massas os rejeitaram categoricamente.

As velhas camarilhas governantes, com todas as vantagens de sua riqueza e poder, foram totalmente humilhadas. Em 2019, Gotabaya Rajapaksa obteve 51% dos votos. No fim de semana, seu sobrinho Namal Rajapaksa obteve humilhantes 2,5%!

O presidente em fim de mandato, Ranil Wickremesinghe, para quem toda a máquina eleitoral dos Rajapaksas havia migrado, que tinha todas as vantagens de ser o titular, de ser o queridinho liberal da classe dominante e de ser capaz de vender seu “sucesso” na negociação de um resgate do FMI, não se saiu muito melhor. Ele obteve apenas 17%.

Qualquer coisa associada ao establishment, às velhas elites e ao punhado de famílias que dominou a ilha por décadas e que a arruinou, foi rejeitada. Em seu lugar, vimos as transformações políticas mais notáveis. Uma geração atrás, o Janatha Vimukthi Peramuna (JVP, “Frente de Libertação do Povo”) se autodenominava como um partido “Marxista-Leninista”. Seus membros foram mortos, presos e exilados após liderar não uma, mas duas “insurreições juvenis” fracassadas contra o Estado. No fim da semana, subiu de 3,6% para 42%, garantindo a presidência para seu candidato Anura Kumara Dissanayake (AKD).

Hoje, o JVP tem pouca relação com o partido que um dia foi. Continua a ostentar a foice e o martelo como logotipo do partido, mas isso é um eco distante de seu passado outrora “revolucionário”.

Seu líder, o novo presidente, vem apertando as mãos de embaixadores, banqueiros e empresários há meses. Ele garantiu aos credores sugadores de sangue e ao FMI que o país “avançará em parceria” com eles sob sua presidência — uma “parceria” que se assemelha à da mula e seu condutor, ou talvez ao do leão e a gazela.

Mas, apesar disso, nos dias que antecederam a eleição, a velha camarilha governante levantou um clamor de provocações contra esse partido “extremista” com seu passado “violento”. Ao fazer isso, eles apenas ajudaram a aumentar as credenciais antissistema do partido aos olhos das massas, que não querem nada mais além de erradicar e destruir todo o establishment.

Se você quiser um exemplo de quão estreita e completamente circunscrita é a chamada “democracia” sob o capitalismo, basta dar uma olhada no Sri Lanka. Cinco anos atrás, as massas foram solicitadas a marcar uma cruz ao lado de um dos nomes de uma lista limitada para decidir quem as governaria, imediatamente após uma onda atroz de ataques terroristas do ISIS. O resultado, previsivelmente, levou a uma vitória esmagadora para Gotabaya Rajapaksas, levando 51% dos votos com a campanha nacionalista de seu clã, encharcada de chauvinismo cingalês-budista e histeria de “segurança nacional”.

Desde aquela eleição em 2019, que deu apenas um instantâneo retrato parcial de um clima temporário, distorcido por um sistema limitado de partidos dinásticos, o país passou por uma pandemia, pela falência nacional, por uma revolução e pela fuga do próprio presidente!

No fim de semana, os Rajapaksas se candidataram novamente. Desta vez, eles colocaram o jovem príncipe e sobrinho de Gotabaya, Namal Rajapaksa, que recebeu apenas 2,5% dos votos. Uma humilhação completa e merecida para este clã.

Examinando o mapa eleitoral da eleição deste fim de semana, percebe-se que as mesmas áreas que votaram mais pesadamente nos Rajapaksas nas últimas eleições, votaram esmagadoramente em um chamado “ex-marxista” agora. Aqui, há uma lição. Em 2019, os empíricos superficiais e pessimistas suspiraram desesperadamente sobre o eleitorado irremediavelmente calcificado, reacionário e racista do Sri Lanka. Com a eleição dos Rajapaksas, eles previram com confiança que o Sri Lanka estava entrando em um período prolongado de reação, até mesmo de “fascismo”.

A mesma espécie de analistas superficiais descartou os trabalhadores que votaram em Trump nos Estados Unidos, os trabalhadores que votaram em Le Pen na França e os trabalhadores que votaram em Modi na Índia como reacionários irredimíveis. E ainda assim, no Sri Lanka, o mesmo eleitorado que levou o clã Rajapaksa ao poder os jogou para baixo de tal forma que é difícil imaginar um caminho para a recuperação.

A lição, se os empíricos são capazes de aprender alguma coisa, é que esses episódios dão apenas algumas pistas sobre os processos realmente complexos em jogo nas mentes de milhões de homens e mulheres, e que eventos poderosos, em um certo estágio, inevitavelmente virarão a consciência completamente de cabeça para baixo.

As eleições burguesas oferecem um instantâneo parcial do estágio pelo qual a consciência está passando. Indo mais a fundo, esses resultados pintam um quadro complexo. A vitória de AKD foi notável, mas ele recebeu um endosso que está longe de ser unânime.

O mapa eleitoral mostra claramente sob quais linhas o eleitorado está dividido. No Norte e no Leste, com suas maiorias tâmil e muçulmana, e nas regiões de plantação das terras altas centrais onde os tâmiles indianos são uma força significativa, não foi AKD, mas Sajith Premadasa do SJB que liderou as pesquisas. Em Colombo, onde um terço da população vem da maioria cingalesa, um terço são tâmiles e um terço muçulmanos, Dissanayake também ficou atrás de Premadasa.

A maioria entre as massas cingalesas votou em Dissanayake, do JVP. Este foi, como explicamos em outro lugar, um voto negativo, um voto contra os antigos partidos e dinastias. Mas o JVP é um partido antigo com uma longa história, e um tanto quanto controverso, para dizer o mínimo, quando se trata de grupos minoritários no Sri Lanka.

De fato, o JVP apoiou a campanha brutal de atrocidades de Mahinda Rajapaksa contra os tâmiles depois que este último foi eleito presidente em 2005. O mesmo voto negativo contra o regime de “Ranil Rajapaksa” não foi, portanto, de forma alguma expresso entre os grupos minoritários como um voto no JVP. Em vez disso, eles votaram amplamente na única outra ferramenta que poderia expressar um clima de rejeição semelhante aos partidos governantes, a saber, o partido de oposição de direita, o SJB, embora sem grande entusiasmo por seu líder bufão, Sajith Premadasa.

Dissanayake, o JVP e a aliança eleitoral do partido, o Poder Popular Nacional (NPP), fizeram muito para se distanciarem do passado do JVP — ou melhor, da parte insurrecional “comunista” do passado do partido! Eles deixaram claro que agora são um partido “respeitável” de centro. Mas não houve repúdio ou pedido de desculpas pela longa história de chauvinismo cingalês-budista do partido.

Não houve indício de um apelo de classe às massas, para unir as massas trabalhadoras atalhando a divisão étnica, cujo sofrimento comum assumiu proporções agonizantes nos últimos dois anos. Este foi, portanto, um fator limitante fundamental para restringir o potencial de sucesso do NPP/JVP, que já está restringido por seu passado duvidoso.

Dissanayake garantiu àqueles que realmente dão as cartas – os capitalistas – que seu programa será responsável, respeitando os acordos feitos com o FMI, talvez alterando este ou aquele dos aspectos mais severos do programa de reestruturação da dívida, mas, de outra forma, garantindo que os credores recebam sua parte.

Todo o programa do partido se centrou no “combate à corrupção” e na “boa governança”. Ao atalhar a corrupção endêmica na política de um país como o Sri Lanka, AKD garantiu às massas que seu governo seria capaz de refinanciar a educação, a saúde e certos programas sociais e tirar o máximo proveito da austeridade, ao mesmo tempo em que restaura as finanças públicas e a estabilidade econômica.

Isso é pura bobagem. A crise na qual o Sri Lanka foi mergulhado é uma consequência da crise abrangente do capitalismo mundial. Só haverá recuperação econômica quando a austeridade e os ataques contra a classe trabalhadora reduzirem os custos trabalhistas a níveis tão miseráveis ​​que o capital internacional possa ter lucros generosos garantidos.

O programa de Dissanayake, ao direcionar a fúria das massas contra a “corrupção” em vez de contra o capitalismo, é música para os ouvidos do FMI e dos grandes credores. Mas estes últimos, no entanto, temem que as massas, ganhando confiança do golpe que deram contra a velha camarilha governante, criem expectativas que vão muito além do programa vazio do NPP.

Esse é o problema quando um programa é vazio: as massas podem preenchê-lo com qualquer conteúdo que imaginarem.

O que podemos esperar daqui para frente? Primeiro, o JVP/NPP enfrentará uma luta para consolidar seu poder após essa vitória. AKD dissolveu o parlamento e convocou novas eleições. Esta é uma atitude popular. O antigo parlamento dominado por Rajapaksa está absurdamente fora de sintonia com o sentimento real no país.

Mas o NPP enfrenta vários obstáculos. A vitória de Dissanayake não foi tão convincente quanto ele esperava. Por todas as razões mencionadas acima, ele é, de fato, o primeiro presidente do Sri Lanka desde 1978 que foi eleito sem obter mais de 50% dos votos de primeira preferência.

Isso apresenta um dilema. A menos que o NPP consiga a maioria dos parlamentares nas próximas eleições parlamentares, o que está longe de ser garantido, uma crise imediatamente vai acenar. Se ele emergir como o maior partido, mas permanecer aquém da maioria, será totalmente incapaz de governar — um governo de crise desde o primeiro dia — ou será forçado a entrar em uma coalizão.

Mas com quem entraria em coalizão? Presumivelmente com um ou outro dos mesmos partidos podres e dinásticos cuja corrupção prometeu erradicar. Seu programa anticorrupção cairá em pedaços.

A velha elite governante está agora cerrando fileiras para disputar as próximas eleições e proteger seus interesses comuns. O UNP de Ranil Wickremesinghe está atualmente em discussão com o SJB de Sajith Premadasa para disputar a eleição em conjunto.

Eles farão de tudo. Assim como AKD e o JVP/NPP. Eles enfrentam a desvantagem de não terem uma máquina partidária baseada no clientelismo extensivo. Podemos esperar alguns movimentos simbólicos por parte de AKD para aumentar as chances do partido, como a recente retirada de todos os carros ministeriais de luxo, tão simbólicos da opulência da elite governante.

Mas o verdadeiro problema para o JVP/NPP começaria se eles realmente ganhassem essas eleições e obtivessem a maioria. A vitória encorajou as massas após dois anos difíceis. Elas pressionarão o novo governo para entregar algo além de medidas simbólicas, como a prisão das figuras mais corruptas do antigo regime.

Eles não têm a intenção de ir em busca da riqueza dos capitalistas estrangeiros e da elite doméstica que realmente drenaram a nação. Haverá uma enorme pressão, enquanto isso, de retornar ao FMI para renegociar a reestruturação da dívida a fim de remover as condições de austeridade mais onerosas.

O partido manteve uma posição ambivalente sobre essa questão. Eles certamente devem saber que, embora seja isso que as massas desejam desesperadamente, não podem esperar por termos melhores do FMI.

Mesmo que o FMI pudesse fazer isso, por razões políticas, eles não podem fazer mais concessões após o acordo alcançado com o governo cessante de Ranil Wickremesinghe. Fazer isso enviaria uma mensagem poderosa às massas oprimidas em dezenas de países que enfrentam a falência ao redor do mundo de que a revolução compensa.

Para qualquer um que tenha ilusões sinceras de que AKD e o JVP/NPP poderiam renegociar um acordo com sucesso, apontamos para o exemplo da Grécia.

Lá, as massas gregas elegeram o governo de esquerda do Syriza em um programa muito menos inequívoco do que o de AKD de renegociar as condições de resgate com o FMI. Após as negociações, nas quais o Syriza ousou mobilizar as massas, eles impuseram termos muito mais duros para punir as massas gregas por seu desafio, e o Syriza capitulou. Na esteira dessa traição, o partido tradicional do capital grego, o Nova Democracia, foi capaz de voltar ao poder.

O governo do Sri Lanka não terá maior sucesso em apelar à “boa vontade” das instituições imperialistas e dos credores sugadores de sangue.

A eleição de AKD é fruto da revolução do Sri Lanka de 2022. Sob os Rajapaksas e Ranil Wickremesinghe, a classe dominante tentou governar por meio da repressão brutal. Agora, por meio do JVP/NPP, eles serão forçados a mudar de rumo e a governar por meio de doces promessas e ilusões. Em seu discurso inaugural como presidente, AKD disse o seguinte: “Há um sonho que nosso povo vê a cada novo dia em que o sol nasce. Ou seja, ‘amanhã será melhor do que hoje!’”

Sim, essas são palavras muito pitorescas, e elas realmente expressam a esperança muito modesta do povo do Sri Lanka. Mas o programa do seu partido não pode garantir tal coisa. O sistema capitalista, que defende, promete apenas um amanhã cada vez mais sombrio.

A classe trabalhadora do Sri Lanka terá que passar por essa nova escola de promessas e palavras doces, das quais sua vanguarda tirará conclusões mais avançadas. Não apenas as velhas camarilhas, mas todo o sistema deve ser erradicado.

Somente o repúdio da dívida e a expropriação da oligarquia local e do capital estrangeiro podem oferecer uma saída para o pesadelo em que o povo foi mergulhado. Tal caminho, que somente um partido revolucionário de trabalhadores avançados e jovens seria capaz de tomar, iluminaria o caminho para a revolução socialista em todo o subcontinente, que atualmente é um caldeirão fervente de raiva revolucionária.

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