"Que se vayam todos": agitação social no Peru derruba a líder golpista, a presidente Boluarte

O que começou como protestos de jovens em oposição a uma contrarreforma da previdência rapidamente se transformou em uma crise política de enormes proporções. Em um cenário de criminalidade desenfreada, corrupção persistente e agitação social, o movimento de massas forçou a deposição da presidente golpista Dina Boluarte. Mas a tentativa de substituí-la de cima para baixo, com a nomeação de José Jerí, não deteve os protestos. 15 de outubro foi um dia crítico: um manifestante chamado Eduardo Ruiz foi morto pela polícia e centenas ficaram feridos.

Os protestos ganharam força em setembro de 2025, com manifestações lideradas principalmente pela "Geração Z", que é particularmente afetada pela contrarreforma da previdência. O exemplo dos protestos em massa de jovens na Ásia, e particularmente o incêndio de instituições públicas no Nepal, serviu de inspiração. Outros setores da população oprimida logo se juntaram aos protestos: sindicatos, trabalhadores do setor de transportes (particularmente afetados pela insegurança) e estudantes.

As razões para os protestos vão além da reforma da previdência: a incapacidade do Estado de conter a criminalidade, a extorsão desenfreada e a sensação de que os criminosos desfrutam de impunidade generalizada foram os principais gatilhos. A percepção da população é de que tanto o governo quanto o Congresso fazem parte do crime organizado, que se envolve em atividades criminosas e mafiosas. Essa percepção se baseia em fatos observáveis: o presidente golpista, o governo e os parlamentares estão tentando encher os bolsos com dinheiro público.

Um exemplo disso é o Congresso restabelecendo um sistema bicameral e permitindo a reeleição sem limite de mandatos, apesar de terem sido rejeitados por 90% da população no referendo de 2018. Essa "reforma" foi vista como uma forma de mais "ladrões" entrarem no Estado ou de manterem seus privilégios mudando de uma câmara para outra, roubando mais dinheiro e se concedendo mais privilégios.

Soma-se a isso a demanda por justiça para as mais de 50 pessoas mortas na repressão aos protestos contra o golpe de Estado que derrubou o presidente Pedro Castillo em dezembro de 2022, por meio do qual Boluarte consolidou seu poder. Este é também o governo que libertou [o ex-ditador] Alberto Fujimori e promulgou a lei de anistia para policiais e militares que violaram direitos humanos durante a guerra suja.

As manifestações começaram nos dias 27 e 28 de setembro e foram recebidas com brutal repressão policial, deixando pelo menos 19 feridos em Lima.

As marchas, bloqueios de estradas e manifestações em Lima e outras regiões denunciaram a intransigência do governo e a deterioração das condições de vida. Os protestos refletem uma crise de legitimidade de todo o regime, expressa em um dos lemas centrais dos protestos: "que se vayan todos" ("fora todos"). A tentativa de fazer concessões, remendando os trechos mais duros da lei previdenciária, não deteve o movimento.

Em 8 de outubro, um ataque criminoso ao grupo de cumbia Agua Marina, enquanto se apresentavam em um centro recreativo para suboficiais do exército, trouxe mais uma vez à tona da agenda política a questão da violência criminosa desenfreada. Este incidente foi a centelha que acendeu o barril de pólvora de raiva e frustração entre a população.

Em 9 de outubro, o candidato presidencial do partido de direita Avanza País, Phillip Butters, foi alvo de uma tentativa de linchamento durante sua visita de campanha eleitoral a Puno, uma das regiões mais atingidas pela repressão durante os protestos contra o golpe de 2022. Durante os protestos de 2022, Butters, sem fundamentos, culpou as vítimas e a população de Puno em geral por causar os distúrbios.

A destituição acelerada de Dina Boluarte

À medida que a indignação crescia, membros do Congresso de diferentes partidos entraram com moções para destituir Boluarte do cargo por "incapacidade moral permanente", alimentadas em parte por escândalos como o "Rolexgate", o abandono do cargo para se submeter a uma cirurgia plástica, a duplicação de seu salário para que pudesse receber uma pensão presidencial mais alta e alegações de enriquecimento ilícito. Dina "Balearte" (que te vai balear, em tradução livre ), como foi rebatizada pelo povo rebelde — era, devido à sua atitude arrogante e desdenhosa, um insulto constante às amplas massas da população.

A ideia era se livrar da presidente, cujo índice de aprovação havia se tornado o mais baixo do mundo, com apenas 2% (abaixo da margem de erro das pesquisas), a fim de limpar a imagem do sistema.

Assim como em outros países afetados pela onda da chamada "revolução da Geração Z", a corrupção e o luxo ostentoso dos que estão no topo contrastam fortemente com as condições gerais de pobreza, miséria e falta de perspectivas de futuro dos que estão na base. Isso é mais agudo entre a geração que cresceu desde o início da crise capitalista em 2008.

Na madrugada de 10 de outubro de 2025, o Congresso da República do Peru declarou vaga a presidência com 124 votos a favor, sem abstenções ou votos contra – um gesto político incomum, dada a amplitude do apoio entre os partidos. Boluarte, que não compareceu ao debate nem apresentou defesa perante o plenário, foi declarada destituída sob a disposição constitucional de "incapacidade moral permanente".

Essa manobra guarda certas semelhanças com a destituição de Martín Vizcarra da presidência em 2020, o que desencadeou protestos massivos de jovens em Lima contra a posse de Manuel Merino como seu sucessor. Já naquela época, havia profunda insatisfação com todo o establishment político, e as massas rejeitavam uma solução de cima para baixo para a crise política.

Se Boluarte não tivesse sido destituída do cargo, a ira popular poderia tê-la derrubado.

A diferença em relação à situação em 2020 é a aproximação das eleições de 2026, para as quais as campanhas eleitorais já começaram. Nesse contexto, Dina Boluarte tornou-se o bode expiatório útil, o ronsoco (capivara – o maior roedor do mundo) encobrindo a corrupção e a criminalidade dos outros ratos.

É mais conveniente, da perspectiva dos criminosos no Congresso, começar a campanha fazendo parecer que sempre quiseram destituir Dina e finalmente conseguiram, quando, na realidade, a grande maioria deles é cúmplice.

Rejeição do novo presidente

Com a Presidência vaga e sem vice-presidentes disponíveis, a Constituição estabelece que o presidente do Congresso assuma a presidência da República. Assim, José Enrique Jerí Oré, até então chefe do Parlamento, foi empossado como presidente interino na madrugada de 10 de outubro.

Jerí, 38 anos, advogado de profissão e líder do partido "Somos Peru", passou da presidência do Congresso (desde julho de 2025) para a liderança do Executivo. Em seu discurso de posse, prometeu "reconciliação", um governo de transição e uma declaração de "guerra ao crime".

Teria sido difícil encontrar outro candidato menos qualificado para resolver a crise de legitimidade das instituições burguesas. Jerí tem um histórico de agressão sexual (rejeitada pelo procurador-geral) e diversas alegações (pendentes) de enriquecimento ilícito e pagamentos irregulares.

A destituição de Boluarte e a nomeação de uma figura tão desacreditada como Jerí, em vez de extinguir as chamas sociais, apenas as atiçaram.

Em 15 de outubro, como parte de um novo apelo por uma greve nacional, milhares marcharam pelas ruas de Lima, enfrentando mais uma vez o enorme e brutal aparato repressivo da polícia. A polícia estava preparada para usar todos os meios à disposição para impedir que os manifestantes chegassem ao palácio presidencial, com medo de que o incendiassem.

Durante os confrontos, um policial à paisana (terna) matou o artista de hip hop Eduardo Mauricio Ruiz Sanz, de 31 anos, conhecido artisticamente como "Trvko", que pertencia a um coletivo cultural no bairro de San Martín de Porres, em Lima. Outro manifestante está em estado grave e dezenas de manifestantes foram feridos por projéteis, gás lacrimogêneo, etc. Naquele dia, as forças de repressão foram particularmente duras com os jornalistas.

Em 2020, o presidente Merino enfrentou imediatamente uma onda de protestos. Sua repressão deixou dois jovens mortos e seu mandato ruiu em apenas cinco dias. Jerí pode seguir o mesmo caminho.

Lições para o movimento

O movimento de protesto no Peru demonstrou sua bravura, coragem diante da repressão e persistência, com manifestações que duraram quase um mês. Apressou a saída da odiada Boluarte. Mas, até agora, não tem força suficiente para derrubar todo o regime.

Para avançar, é necessário aprender as lições das experiências recentes, tanto das mobilizações contra a corrupção em 2020 e da eleição do governo de Pedro Castillo, quanto da resistência em massa ao golpe em 2022-23.

Em primeiro lugar, é crucial compreender que a corrupção não é acidental, mas inerente a todos os regimes capitalistas. Ela existe em países dominados pelo imperialismo, com burguesias fracas e parasitárias, como o Peru, mas também em países capitalistas "avançados", como Espanha, Grã-Bretanha e EUA, onde o lobby, o suborno e a concessão de contratos ao círculo fechado de ministros e políticos também são comuns.

A exigência de um governo “limpo” está em contradição direta com a própria existência do sistema capitalista.

O governo de Pedro Castillo (2021-22), eleito pelas massas trabalhadoras e camponesas do Peru rural e indígena, que ansiavam por uma mudança substancial em suas condições de vida por meio do controle dos recursos naturais (gás e mineração), também contém lições importantes.

A principal lição é que a oligarquia capitalista não permitirá que seu poder, propriedade ou privilégios sejam minimamente afetados. Qualquer tentativa de moderar seu programa para agradá-la só serve para desmoralizar as massas, desmobilizá-las e, assim, abrir caminho para o desastre. A palavra de ordem eleitoral de Castillo "Chega de pobres em um país rico" só poderia ser alcançada por meio de um confronto direto com os donos do país.

A luta parlamentar pode e deve ser utilizada, mas sempre com a consciência de suas limitações e como auxiliar da luta das massas nas ruas.

O movimento insurrecional contra o golpe de 2022-23 também contém lições importantes. A mobilização em massa foi muito longe e, por vezes, desafiou o poder do Estado em todo o sul do país. Mas nunca conseguiu envolver a classe trabalhadora como um todo, particularmente na capital. A liderança da CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru) nunca teve a intenção de mobilizar decisivamente a força da classe trabalhadora, particularmente dos mineiros. Apelos foram feitos, mas apenas pretendiam disfarçar a ausência de uma mobilização real.

Agora, o movimento é mais forte na capital, embora sua principal base continue sendo a juventude. As regiões, tanto no sul quanto no norte, permanecem em grande parte à margem, talvez devido a um ressentimento histórico em relação à capital, pois cada vez que se manifestam, sentem que estão sendo "deixadas em paz".

Para derrubar o regime corrupto e podre da oligarquia capitalista e seus representantes políticos (sejam eles apoiadores de Fujimori, a direita brutal e arraigada, ou a esquerda engomada que faz o jogo deles), é necessária a mais ampla mobilização possível da classe trabalhadora e do campesinato indígena pobre.

Para isso, é necessário um programa que ganhe a todos. As palavras de ordem do momento são:

  • Fechem o Congresso infestado de ratos – Que se vayam todos! (Fora Todos!)
  • Assembleia Constituinte Revolucionária, com representantes eleitos de fábricas, bairros, escolas e organizações camponesas.
  • Paz, trabalho e terra.
  • Expropriação da oligarquia capitalista e reestatização dos recursos naturais.

E para isso:

  • Uma greve nacional simultânea e bloqueios de estradas, até a queda da oligarquia e seus representantes.
  • Organizar comitês de luta de todos os setores oprimidos em todas as regiões, com coordenação nacional.
  • Todo o poder aos trabalhadores!