Para onde vai o governo Bukele depois de militarizar o parlamento em El Salvador?

No último dia 09 de fevereiro, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, ordenou que soldados do exército invadissem o parlamento salvadorenho. Alguns dias antes convocou o povo à insurreição fazendo uso do Artigo 87 da Constituição que permite a rebelião popular no caso de quebra da ordem constitucional. Essas ações representam um marco na história contemporânea de El Salvador, já que desde os Acordos de Paz de Chapultepec[1], nenhum governo utilizou a força militar para obter reformas ou empréstimos para financiar sua políticas.

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Estes acontecimentos também anunciam convulsões dentro das instituições do Estado; uma crise que têm suas bases nas profundezas do regime democrático burguês. O emprego dos militares também foi um recado do presidente Bukele para todas as forças que lhe fazem oposição.

Um golpe no parlamento é conveniente?

Em nossa declaração anterior, explicamos que um golpe no parlamento, por enquanto, não seria conveniente nem para o presidente Bukele nem para o imperialismo norte-americano. Isso significaria dissolver uma das mais simbólicas instituições da democracia burguesa para, na prática, substituí-la por um regime policial militar. Esta seria uma ação desnecessária que apenas complicaria as coisas e não traria nenhuma vantagem aos interesses dos capitalistas. A exploração e a dominação capitalistas estão melhor resguardadas sob o invólucro democrático burguês: quanto mais perfeita a “democracia”, menos visível é a ditadura burguesa aos olhos das massas. Lenin expõe essa ideia com absoluta clareza em seu “O Estado e a Revolução”, seguindo a análise de Marx e Engels, ele diz:

A onipotência da “riqueza” funciona, portanto, melhor em uma república democrática, uma vez que não depende de determinados defeitos do mecanismo político, do mau invólucro político do capitalismo. A república democrática é o melhor invólucro político possível para o capitalismo; por isso, o capital, tendo se apoderado, desse melhor invólucro, (…) fundamenta seu poder de modo tão sólido, tão seguro, que nenhuma substituição na república democrática burguesa, nem de pessoas, nem de instituições, tampouco de partidos, abala esse poder.

Não sabemos se Bukele tinha consciência disso naquele momento, mas podemos afirmar que Washington sabia perfeitamente. A burguesia não mutila parte de seu aparato de dominação, o Estado, sem que haja um motivo fundamental ou perigo iminente de processos revolucionários que ameaçam o poder estabelecido. Revoluções? Guerras com inimigos internos? O regime em El Salvador atualmente está livre de qualquer uma dessas ameaças.

Ao contrário disso, Bukele tem todo um cenário favorável para governar com o parlamento no próximo período. Segundo dados revelados, há apenas um mês, por uma pesquisa da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas (UCA) – uma das pesquisas eleitorais mais sérias do país –, o Nuevas Ideas, partido de Bukele, lidera com 46,5% das intenções de voto, seguido de longe pelo Alianza Republicana Nacionalista (ARENA), com 6,8%, pela Frente Farabundo Martí por la Liberación Nacional (FMLN), com 5,2% e pela Gran Alianza por la Unidad Nacional (GANA), com 3,7%. A diferença que o partido do presidente abre na frente dos outros partidos é absolutamente esmagadora, então qual seria o sentido de dissolver pela força o parlamento burguês, se você pode controlá-lo elegendo a maioria dos deputados nas próximas eleições?

Na verdade, acreditamos que Bukele buscava duas coisas: demonstrar sua autoridade e poder e, acima de tudo, desacreditar ainda mais os outros partidos políticos e a própria Assembléia Legislativa perante o povo. No entanto, o método que utilizou foi considerado um exagero, mesmo pelos seus aliados nacionais e internacionais.

Os Estados Unidos apoiou o suposto golpe?

Uma semana após os acontecimentos do dia 9 de fevereiro, ficou claro que Bukele agiu de maneira independente. Temos certeza de que houve muitas tentativas, tanto dos EUA quanto de agências internacionais, no sentido de controlar suas ações horas antes dos militares tomarem a Assembleia Legislativa.

Após esse evento, agências, imprensa e parlamentos internacionais, se puseram a denunciar aos gritos “um ataque à democracia“. O New York Times, o Washington Post, a CNN, a OEA, a União Europeia e a ONU condenaram com firmeza as ações de Bukele categorizando-as como ações ditatoriais que comprometem o Estado democrático de direito alcançado com os Acordos de Paz de 1992.

O que é uma grande hipocrisia, porque sabemos que eles silenciaram por anos em situações de repressão e ditadura na América Latina. Começando pelo golpe e fraude eleitoral em Honduras que permitiu a imposição de uma ditadura sangrenta contra o povo, ou nos últimos acontecimentos em que os governos do Chile, Haiti, Colômbia e Equador fizeram uso excessivo do aparato policial e militar contra o povo. Esses eventos, por acaso, não seriam também antidemocráticos? Porque temos visto tão poucas frases de efeito e apelos enérgicos a respeito deles?

A verdade é que todas essas declarações hipócritas jamais devem ser interpretadas como um chamado à defesa dos interesses do povo. O que eles realmente estão defendendo é a liberdade de dominar e explorar, através de suas instituições que, embora hoje estejam desacreditadas aos olhos do povo, são ferramentas eficazes para manter a ordem das coisas. Essas instituições, como a Assembleia Legislativa, o Supremo Tribunal de Justiça etc., não estão na sociedade para que as coisas mudem, pelo contrário: elas existem para que as coisas permaneçam como estão.

Foi através dessas instituições “democráticas” que eles nos impuseram o dólar como moeda nacional, privatizaram o sistema de pensões e hoje os ricos guardam nosso dinheiro e nos dão uma pensão miserável. Essas instituições permitem que o agressor de uma menina de sete anos fique livre enquanto uma mulher com complicações obstétricas é acusada e condenada por aborto com sentenças de até 30 anos. Essas instituições obsoletas são o freio ao acesso à saúde, educação e moradia.

Dizem repetidamente que são a expressão da democracia, mas será possível a nós pobres, mudar tudo o que nos afeta por meio dessas instituições? A classe trabalhadora tenta há anos mudar suas condições de vida votando em um deputado, prefeito ou presidente, mas no final nada muda. De que democracia estamos falando? Tudo é uma farsa.

Por que o povo apoiou essas ações?

Levando em consideração o fato de que as pessoas foram às urnas por anos, confiando que suas condições de vida mudariam se votassem nesse ou naquele candidato, não é difícil de entender que, depois de não alcançarem nenhuma mudança significativa, a decepção com os partidos e seus representantes se expressaria em descontentamento e, por sua vez, buscariam outras alternativas para mudar suas condições de vida. E foi o que aconteceu em El Salvador nos últimos anos. Os níveis de aceitação popular de partidos e instituições políticas como o parlamento sofreram uma queda retumbante e quase ninguém acredita mais neles.

Em um artigo recente, o acadêmico Manuel Alcántara cita dados interessantes sobre a situação em El Salvador:

Esse cenário é acompanhado de um grande descontentamento das pessoas com a política. Segundo o site Latinobarómetro, na última década, o apoio à democracia caiu de 68% para 28% e a confiança nos partidos políticos caiu de 39% para 6%. Quanto a identificação com o programa dos partidos políticos caiu de 51% para 35% segundo outro site de pesquisas de opinião, o Barómetro de las Américas. Paralelamente a participação eleitoral é de quase 50%, uma redução de 15%, o que, no entanto, se alterou de maneira muito modesta nas eleições presidenciais de 2019, por conta da presença de Nayib Bukele como candidato.

Deixando um pouco de lado a mobilização obrigatória dos funcionários do Estado e levando em consideração os dados citados por Manuel Alcántara, não é difícil compreender porque cerca de 5 mil pessoas se mobilizaram, no domingo, 9 de fevereiro, gritando a favor da tomada do Parlamento. Obviamente essas pessoas veem em Bukele alguém que pode acabar com aqueles que aplicaram políticas reacionárias contra o povo em todos esses anos ou que nunca fizeram nada para revertê-las. Pelo contrário, se opõem às políticas do governo que, segundo Bukele, estão tendo excelentes resultados.

Bukele justifica suas ações sob essa ideia central: “os deputados se opõem a meu governo, por isso temos que pressioná-los, obrigá-los a trabalhar para o povo e tudo do governo que eles não aprovam é um ataque aos mais pobres”. Desde o início, se aproveitar do descontentamento das pessoas têm sido sua melhor tática.

As pesquisas de opinião e as conclusões de Bukele

Em janeiro, a pesquisa da UCA revelou que mais de 50% das pessoas acreditavam que sua situação, em geral, havia melhorado no ano passado e mais de 50% também disseram concordar com as políticas da Bukele, destacando seu Plano de Controle Territorial. Entretanto, e apesar desses bons números, sua classificação caiu alguns décimos: 8,37 para 7,8 em 7 meses. Esses dados lançam luz aos eventos recentes.

Se partirmos disso, podemos concluir facilmente que a recusa dos deputados em aprovar empréstimos para financiar as políticas de Bukele causaria um conflito iminente; isso apresentou o gancho perfeito para o governo. Os deputados sabiam disso perfeitamente, o que não imaginavam era onde podia chegar a raiva de Bukele que se expressou por meio da manipulação do povo e das forças armadas. Temos um presidente totalmente instável e, portanto, imprevisível.

Uma outra pesquisa publicada em janeiro revela fatos bastante interessantes que Bukele pode ter levado em consideração quando tomou essas atitudes. Um artigo da Asociación de Radios y Programas Participativos de El Salvador (ARPAS) destacou a seguinte pergunta: “Possíveis greves ou protestos que causem desordem pelo país, justificariam o uso da força por parte das autoridades? Um total de 50,5% disseram que sim, além disso, 76,6% consideraram necessário que as autoridades governassem com mãos de ferro”.

E continuam: “Em alguns casos, um governo autoritário pode ser melhor do que um democrático?” Concordaram 48,4%, enquanto 43,8% disseram que não. O Instituto Universitario de Opinión Pública (IUDOP – UCA), por sua vez consultou: “Grupos e pessoas que representam sérias ameaças à sociedade devem ser eliminados?”. Um total de 64,3% respondeu que sim. Parece que os conselheiros do governo e o próprio Bukele sabem interpretar muito bem as pesquisas. As respostas a essas perguntas refletem o estado convulsivo da sociedade contra aqueles que parecem não querer melhorar a vida das pessoas.

Bukele sempre ganha

Se fizermos uma análise das ações de Bukele, podemos concluir que, entre as classes oprimidas, ele ganhou certa popularidade por dizer que enfrenta aqueles que sempre se opuseram às medidas que as beneficiam. Os seguidores de Bukele interpretam todas essas ações como uma defesa dos planos que mantêm a segurança pública no país. Isso não é verdade. Já explicamos que o plano de segurança pública de Bukele é um plano militarista e de repressão, que pode parar a violência apenas por um tempo; há um limite nele e mais cedo ou mais tarde isso virá à tona. As políticas que podem realmente acabar com a violência e o crime devem caminhar juntas com a elevação dos padrões de vida da classe trabalhadora no sentido de extinguir a exclusão e a desigualdade social.

O descrédito em relação aos deputados é tanto que isso lhes meteu em uma encruzilhada e tudo o que fazem e dizem pode ser usado ​​contra eles. Assim, se eles bloqueiam o empréstimo ao governo, eles ganham o ódio do povo, se o aprovam, ganham com isso pouco ou nenhum capital político. Seu fracasso nas eleições já foi definido há muito tempo. Não importam suas ações nos próximos meses, já que eles também são reacionários demais para dar ao povo o que ele precisa, como por exemplo, pensões decentes ou leis sobre os recursos hídricos. Seus interesses são os mesmos dos grandes capitalistas e fazer algo que beneficie o povo é contra sua natureza. Nestas circunstâncias, Bukele tem tudo para continuar vencendo até 2021.

É necessário esclarecer que, embora seja real a decepção e a frustração do povo com os partidos políticos e seus deputados, isso não significa que ele quer ficar sem as políticas públicas que lhes são benéficas. Os trabalhadores ainda mantêm muitas ilusões na democracia burguesa e isso se evidencia nas pesquisas de opinião recentes. Muitos ainda acreditam que, se outros deputados do Nuevas Ideas, partido governista, forem eleitos ao parlamento, as coisas podem realmente mudar. Ignorar isso pode levar a erros graves na interpretação dos fatos.

Essa perspectiva é muito boa para Nayib Bukele e seu partido Nuevas Ideas. O grande problema irá de fato se expressar quando o partido alcançar o poder total sobre o Executivo e a Assembléia Legislativa, porque as desculpas vão se esgotar e não haverá ninguém para culpar pela impossibilidade de elevar o padrão de vida dos mais pobres. Para isso seria preciso impulsionar a economia, criar mais empregos, melhores salários e maiores oportunidades para os jovens. Seria possível a eles fazer tudo isso sem investimentos e sem atacar os seus próprios amos?

O investidores estrangeiros e o governo Bukele

Mas nem tudo são flores para o governo Bukele. Os investidores que se encontram em um estado de grande nervosismo por conta de um possível colapso da economia mundial, que pode irromper a qualquer momento, necessitam hoje, muito mais que em outros tempos, de condições estáveis para investir nos países.

Quais são essas condições que tanto falam os governos e investidores? Em linguagem simples, significa salários baixos, liberdade sindical zero e impostos zero, mas além disso – e essa é uma questão fundamental – eles precisam de instituições públicas estáveis ​​que saibam lidar bem com os conflitos trabalhistas ou que saibam manter a exploração e a miséria como algo normal e comum.

Isso se confirma nas declarações de Luis Cardenal, presidente da Asociación Nacional de la Empresa Privada (ANEP), a respeito das ações de Bukele:

Os investidores cuidam de seus recursos, suas poupanças e não investem em um local onde não há garantias suficientes de que haverá uma estabilidade e segurança que os permitirão garantir seus investimentos para o futuro.

Dessa maneira, a sorte de Bukele está lançada.

Nenhum investidor sério irá se arriscar em um país onde o presidente mobiliza seus seguidores para fazer cumprir suas políticas, onde as instituições que precisam proteger seus interesses estão em constante crise. Isso é arriscado demais para os capitalistas. Bukele colocou uma corda no seu próprio pescoço com essas ações. Se ele planejava receber uma porcentagem do investimento estrangeiro, o que por si só já era difícil, com isso ele terá condições muito mais adversas, o que trará conflitos com sua própria base de apoio, pois isso inviabiliza o cumprimento de suas promessas.

A atuação de Bukele depois do 9 de fevereiro

Agora Bukele terá que ganhar novamente a confiança dos capitalistas internacionais. Imediatamente, após o dia 9, suas aparições em público e nas redes sociais se reduziram. Ao passo em que deu oito dias para que a Assembléia Legislativa aprovasse os seus empréstimos, quando esse prazo venceu não se mobilizou ou chamou qualquer tipo de insurreição. Suas orelhas ainda estavam um pouco vermelhas depois que Washington as puxou com força.

No fim, as pressões internacionais pesaram sobre suas ações. Poderemos ter nos próximos dias, atitudes mais ponderadas de sua parte, porém, o germe do autoritarismo estará sempre latente em sua personalidade. Custará um pouco até que volte a ganhar a confiança da opinião internacional.

Com seu sumiço, Walter Araujo, ex-deputado da ARENA e ex-candidato a prefeito de San Salvador pelo GANA, assumiu o falso papel de caudilho em seu lugar, convocando uma mobilização popular para o domingo, dia 16 de fevereiro. Esta não passou de um teatro de péssima qualidade. Muitos dos que estiveram presentes se sentiram enganados. Qual o sentido de se viajar tantos quilômetros país adentro, para ouvir um discurso de 15 minutos, marcado pelo mais baixo patriotismo, onde se termina adiando a insurreição por mais 15 dias? Como um circo que anuncia seu último espetáculo desde o primeiro dia que chega na cidade.

O que significa esse vai e volta para o regime? O que há em segundo plano?

Tudo o que está acontecendo é expressão de uma crise mais profunda que está se desenvolvendo sob a superfície. Essas lutas acima evidenciam as enormes pressões que vêm de baixo e são os primeiros indícios de eventos muito mais convulsivos; precisamos nos preparar para a chegada desses eventos que mesmo agora estão sendo difíceis de se controlar.

Certamente as tensões entre as instituições burguesas permanecerão na agenda até 2021, o que é uma péssima notícia para quem pede por paz e reconciliação. O imperialismo e a burguesia nacional precisam de um governo forte e confiável para os seus negócios. Bukele precisa conceder-lhes tal coisa, mas isso não será tão fácil. Os oprimidos assumem o governo Bukele como sendo seu e farão o mesmo com os mandatos dos deputados do Nuevas Ideas que irão eleger em 2021. Dessa maneira, a pressão dos de baixo, para que o Nuevas Ideas cumpra seu programa será enorme desde o início. A medida que as promessas não forem cumpridas, a oposição começará a ganhar força e poderemos assim ver grandes acontecimentos na luta de classes.

Há uma ameaça de fascismo agora?

Equivocadamente alguns intelectuais argumentam que Bukele quer impor um regime fascista, mas este é um exagero que não tem lógica alguma. Nós que ao longo do tempo, procuramos forjar uma imagem de seriedade, negamos a possibilidade de surgimento do fascismo em El Salvador e na América Latina por muitos anos. Obviamente, nossa análise não parte de uma questão subjetiva dos indivíduos, como se eles agissem como quisessem, mas de uma análise aprofundada, levando em consideração todas as variáveis ​​possíveis da situação para se chegar a uma análise específica.

Nós já havíamos dito anteriormente que, em primeiro lugar, não existem por hora as condições para um regime fascista se instalar em El Salvador. Uma dessas condições seria existência da base social que serviu de apoio para os regimes fascistas no século 20. Por exemplo, as bases com as quais Hitler contava na Alemanha ou Mussolini na Itália eram os camponeses que eram uma força proporcionalmente grande na sociedade alemã e italiana da época. Eles também podiam contar com os estudantes, que na sua maioria foram ganhos para o fascismo. Essas bases atacaram de armas nas mãos as organizações da classe trabalhadora construídas no passado.

Hoje, essas forças reacionárias estão fora de combate. O capitalismo se desenvolveu tanto que deslocou completamente o camponês, a tal ponto que hoje não temos mais camponeses, mas apenas um tipo de trabalhador rural despojado de suas terras, é o caso em El Salvador. Não podemos chamar os seguidores de Bukele de fascistas, apenas porque alguns, nas redes sociais, costumam ser violentos contra seus oponentes. Isso seria uma generalização absurda, nem todos os eleitores e apoiadores do Nuevas Ideas são reacionários; alguns estão simplesmente confusos ou enganados, se não a maioria.

Por outro lado, podemos dizer que algumas das ações de Bukele podem ter conteúdo fascista, como no caso do ataque ao Sindicato de Trabajadores del Instituto Salvadoreño del Seguro Social (STISSS), porém não se pode rotular um regime como fascista apenas por ter um ou outro método fascista; não é dessa maneira que podemos analisar especificamente um regime. Isso nos levaria a uma série de erros em nossa prática revolucionária.

A relação entre classes na sociedade burguesa

Devemos ter em mente que a evolução dos regimes fascistas na Europa também foi marcada por grandes eventos na luta de classes e pela própria Primeira Guerra Mundial. A derrota dos movimentos revolucionários dos anos 1920, onde a classe trabalhadora lutou para tomar o poder, mas foi severamente derrotada pela traição dos líderes social-democratas, foi uma das condições básicas para a ascensão do fascismo.

Na América Latina, a classe trabalhadora está totalmente intacta – ela não é derrotada nas lutas revolucionárias ou insurrecionais há décadas. O que temos é uma poderosa classe trabalhadora. Em alguns casos, como no Chile e no Equador, ela está amadurecendo em direção à luta revolucionária e à tomada do poder. Nesses países, e também em El Salvador, a classe trabalhadora ainda não foi derrotada em uma luta aberta para tomar seu destino em suas mãos e está apta a lutar para mudar suas condições de vida.

Há um perigo para as relações de produção?

O desenvolvimento dos regimes não se deve aos interesses subjetivos dos indivíduos, mas às condições objetivas em que esses indivíduos se desenvolvem. Nos países onde vimos o advento do fascismo, as relações de produção do próprio capitalismo corriam sério risco, elas não podiam ser salvas sob regimes democráticos burgueses, ou seja, uma república democrática como a que conhecemos em El Salvador.

Isso criou a necessidade de um regime totalitário, que pudesse estar acima de todas as classes: a burguesia, os trabalhadores e os camponeses, para manter em segurança as relações de produção, mas não antes de atacar todas as classes, destruindo as instituições burguesas, expropriando a indústria, bancos e as terras que estavam nas mãos do capital para colocá-los sob os interesses do regime e, ao mesmo tempo, esmagando e aniquilando violentamente os oprimidos, principalmente organizações de trabalhadores, sindicatos e partidos.

É por isso que os regimes fascistas nem sempre têm a aprovação do imperialismo. A burguesia apenas dá poder aos fascistas quando não há outro remédio. Porém esses regimes não podem ser controlados. Devido a suas características específicas, esses regimes não podem ser mantidos ao longo do tempo, porque surgem com um objetivo central: acabar com a ameaça de revolução.

Estudando um pouco a história, as ações de Bukele nos parecerão com o miado de um gatinho, e não com o rugido de um tigre fascista. Por enquanto, não há movimento de massas que se oponha às políticas de Bukele, muito pelo contrário, têm um apoio significativo da classe trabalhadora que enxerga a perspectiva de mudança nelas.

Embora não seja para sempre, as massas podem apoiar um charlatão como Bukele por algum tempo, mas mais cedo ou mais tarde exigirão que ele cumpra suas promessas. Quando isso acontecerá? Uma data exata não pode ser definida. Pode ser alguns meses depois de conseguir uma maioria significativa dos deputados na Assembleia Legislativa ou até antes, mas uma coisa é certa: quando isso acontecer, Bukele estará com sérios problemas.

Temos afirmado que, por enquanto, o regime democrático burguês é favorável para atender aos objetivos das multinacionais e capitalistas nacionais por trás de Bukele. E enquanto o cenário for favorável, permanecerá assim, mas também dissemos que Bukele em certos momentos pode se tornar um bonapartista. O que isso significa? Significa que antes da tentativa de cumprir esses objetivos, ele pode tentar se equilibrar entre as classes, beneficiando uma e atacando outra, ou usando sua correlação de forças para alcançar seus objetivos, como fez no domingo, 9 de fevereiro.

Se a oposição a Bukele se tornar mais forte e sua base social vier a diminuir, não se exclui a possibilidade de que ele possa tentar criar regime completamente bonapartista, se tornando assim um juiz entre as classes, substituindo o Estado e todas as suas instituições, concentrando todo o poder em suas mãos para atingir seus objetivos no poder. O que significa que, para derrubar um regime desses, teremos que derrubar seus destacamentos armados auxiliares e, para isso, teremos que armar a vanguarda proletária, criando uma milícia operária.

Ted Grant explica muito bem esse tipo de regime em seu artigo “Democracia ou Bonapartismo na Europa”:

…a essência do bonapartismo: uma ditadura policial-militar nua, o “árbitro” com uma espada. Um regime que indica que os antagonismos na sociedade se tornaram tão grandes que a máquina estatal, “regulando” e “ordenando” esses antagonismos, assume uma certa independência de todas as classes. Um “juiz nacional”, concentrando o poder em suas mãos, pessoalmente ‘arbitra’ os conflitos dentro da nação, jogando uma classe contra a outra, ainda assim sendo uma ferramenta dos donos da propriedade. Ao mesmo tempo, caracterizamos como bonapartista, um regime no qual as forças orgânicas de classe da burguesia e do proletariado se equilibram mais ou menos entre si, permitindo assim ao poder estatal manobrar e equilibrar os campos em disputa e novamente dando ao poder estatal uma certa independência em relação à sociedade como um todo.

Qual é a perspectiva mais próxima?

A perspectiva mais próxima é o ressurgimento da luta de classes e não o advento de um regime fascista, ainda que ocorram batalhas ardentes entre a classe trabalhadora e a classe dominante. Falar sobre fascismo é um exagero, não apenas porque acreditamos que é uma análise incorreta, mas porque, se for verdade, devemos ter uma atitude mais séria para nos defender.

Para concluir: alegar que o fascismo está chegando, também significa que estão chegando os assassinatos em massa, a perseguição política sistemática dos líderes do movimento sindical, o ataque às instalações das organizações dos trabalhadores, a supressão da liberdade de reunião, expressão, greve e manifestação, a concentração do poder econômico nas mãos do regime etc. Sendo assim deveríamos armar os trabalhadores para se defender. Não se barra um regime fascista com apelos à paz, reconciliação e ao diálogo, como os movimentos sociais fazem atualmente. Em outras palavras, isso significaria nos entregar em uma bandeja de prata, para sermos mortos por um regime desses. Quando colocamos essa análise geral em questões práticas, essas declarações se mostram muito exageradas.

O que defendemos?

Nós levantamos a bandeira da luta em defesa das nossas conquistas; as conquistas de milhares de combatentes honestos que deram suas vidas para alcançar as poucas liberdades democráticas que conquistamos nos limites regime capitalista. Não compartilhamos da absurda consigna “em defesa da democracia” que os ex-guerrilheiros da FMLN e outros movimentos sindicais e políticos levantam de maneira abstrata. Isso seria o mesmo que nos posicionar ao lado da OEA, Washington, ANEP e ARENA, contra os trabalhadores que enxergam em seus deputados na Assembleia, um freio no seu objetivo de alcançar melhores condições de vida.

Defendemos as magras liberdades democráticas que nos permitem expressar, nos conhecer e nos organizar como classe trabalhadora explorada. Embora limitadas, essas ainda são conquistas inestimáveis de nossos mártires e heróis das décadas de 1970 e 1980. Denunciamos que fazer a defesa dos deputados da Assembleia e o do próprio parlamento e outras instituições é um auto-boicote, no sentido de que essas mesmas instituições são responsáveis ​​por nossa miséria. Lutamos para mudar o atual parlamento burguês, um local de charlatanismo e corrupção, por um parlamento dos trabalhadores e a favor dos trabalhadores. Por uma constituição baseada nos interesses dos trabalhadores.

A atual Constituição nada mais é do que o arcabouço das leis que governam nossa exploração, as leis que sempre beneficiaram os capitalistas. Quando se trata deles a lei é cumprida, mas quando se trata de garantir educação, saúde e moradia, direitos estabelecidos pela Constituição, os deputados e funcionários do governo passam por cima dela.

A que liberdade, democracia ou constituição eles se referem quando falam ao aposentado que recebe apenas US$ 200 por mês para sobreviver? A que direitos eles se referem quando falam ao jovem que não pode frequentar o ensino superior por falta de universidades estatais e gratuitas? A que liberdade se referem quando falam a uma mulher que não tem o direito de decidir sobre seu próprio corpo? Não há fundamento nisso. Trata-se de uma mentira muito bem elaborada e agora os trabalhadores estão compreendendo através da sua própria experiência, por isso rejeitam os discursos daqueles que falam em nome da democracia e da paz.

As tarefas da esquerda

A tarefa da esquerda não é se unir aos reacionários contra Bukele. A tarefa dos revolucionários é lutar contra Bukele, explicando que defendemos nossas conquistas e direitos, mas também lutamos por outro tipo de Estado, um Estado que pode ser organizado a partir de todos os cantos do país, de todos os centros de trabalho, escolas e universidades.

A maneira revolucionária de enfrentar o governo de Bukele, a burguesia e o imperialismo é formar uma plataforma da classe trabalhadora, jovens, mulheres e todas as classes oprimidas, com base nas demandas mais fundamentais do momento. Falamos de nacionalização do sistema de pensões; aumentos salariais acima do custo de vida; uma lei de recursos hídricos que evite a privatização da água, um sistema de ensino laico, gratuito e de qualidade, a descriminalização do aborto e o fim da violência machista e dos assassinatos de mulheres. Somente um programa amplo e geral de luta pode alcançar a unidade dos revolucionários contra os ataques de Bukele.

Devemos transformar esta sociedade

Por acaso não somos capazes, nós os oprimidos, de mudar estas condições miseráveis? Nós acreditamos firmemente que sim. Acreditamos que uma sociedade totalmente diferente é possível e que o poder de mudar tudo se concentra em nossas mãos. Porém, também acreditamos para obter esse êxito se faz necessária a construção de uma tendência política forte, que possa construir um partido político independente da classe operária no futuro.

Confiamos no poder da classe trabalhadora que está em toda parte: nas lojas e supermercados, nos mercados, nas tecelagens, no call center, nas fábricas de todos os setores. Sem essa força formidável nada se move no país, nem mesmo uma roda. Esse é o verdadeiro poder da classe trabalhadora salvadorenha, o único poder que estando organizado pode mudar a sociedade degenerada em que vivemos. Mas isso só será possível a partir de uma luta incansável contra a burguesia, o imperialismo e seus lacaios pagos e todos os partidos políticos e funcionários do regime.

Junte-se a nossa luta!

Chamamos a todos os jovens honestos e abnegados. Aqueles que sofrem diariamente a miséria, a exploração e a marginalização a se somar a nossa luta. É necessário compreender que somente juntos, nos formando como combatentes revolucionários, na teoria e na prática, é que seremos capazes de mover todas as fundações dessa sociedade decrépita que os atuais governantes nos oferecem. Somos chamados a vencer. Organize-se conosco e vamos lutar juntos pelo socialismo!

Nota:

[1]Os Acordos de Paz de Chapultepec foram um conjunto de acordos assinados e 16 de janeiro de 1992 entre o Governo de El Salvador e a Frente Farabundo Martí por la Liberación Nacional (FMLN) no Castillo Chapultepec, México, que puseram fim a doze anos de guerra civil no país (NdT).

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