O significado de Donald Trump: uma análise marxista Image: Own work Share TweetUm espectro assombra a Europa. Esse fenômeno terrível surgiu repentinamente, como que por magia negra, evocado do poço mais sombrio do inferno por um demônio malévolo, para aturdir e atormentar as pessoas de bem, perturbar seu descanso e povoar seus piores pesadelos.O mais assustador nesse fenômeno é que ninguém parece capaz de explicá-lo com precisão. Ele se apresenta como uma força da natureza aparentemente incontrolável, varrendo tudo à sua frente. Em um intervalo de tempo incrivelmente curto, conseguiu tomar o controle do país mais rico e poderoso do mundo.Todas as forças combinadas dos grandes e dos justos, todos os defensores da “ordem internacional baseada em regras”, todos os paladinos da moral e dos “bons costumes” – todos se uniram para derrotar esse monstro da iniquidade.Nossa maravilhosa imprensa livre, amplamente reconhecida como a principal campeã da liberdade e da livre expressão, ergueu-se como um só homem para travar a boa batalha em defesa da democracia, da liberdade e da lei e da ordem.Mas todos falharam.O nome desse espectro é Donald J. Trump.PânicoA absoluta bancarrota intelectual da classe dominante se evidencia na total incapacidade dos estrategistas do capital de compreender a situação atual — e menos ainda de prever satisfatoriamente os acontecimentos futuros.Esse declínio intelectual atingiu seu ponto mais baixo na figura dos líderes políticos europeus. Eles conduziram esse outrora poderoso continente diretamente a um pântano de decadência econômica, cultural e militar, reduzindo-o a um estado de completa impotência.Após décadas sacrificando tudo em benefício do imperialismo dos Estados Unidos da América e acostumando-se ao papel humilhante de servos de Washington, agora se veem abandonados por seus antigos aliados e deixados à própria sorte.Sua estupidez ficou completamente exposta com a derrota na Ucrânia e o colapso de seus delírios sobre derrotar a Rússia e destruí-la como potência. Em vez disso, deparam-se agora com uma Rússia poderosa e ressurgente, equipada com um enorme exército, armada com as mais modernas tecnologias bélicas e endurecida por anos de experiência em combate.Nesta conjuntura crítica, encontram-se repentinamente desamparados pelo poder que supostamente deveria protegê-los. Correm como galinhas decapitadas, tropeçando sobre si mesmos na ânsia de reafirmar seu apoio eterno e inabalável a Volodymyr Zelensky.Lamentam-se e se enfurecem contra o homem na Casa Branca, a quem veem como o único responsável pelo desastre que subitamente os atingiu.Mas todo esse coro histérico não passa de uma expressão de pânico — que, por sua vez, é apenas uma manifestação do medo. Medo puro, cego e incontrolável. Por trás da falsa fachada de desafio, esses líderes estão paralisados de terror, como um coelho hipnotizado pelos faróis de um carro que se aproxima.Qual é o verdadeiro motivo?Se formos capazes de ignorar, por um momento, a cacofonia de reclamações, protestos e insultos e tentar decifrar o significado de tudo isso através da densa névoa da histeria midiática, começamos a vislumbrar o contorno difuso da verdade.Para qualquer pessoa com um mínimo de bom senso, é evidente que uma crise dessa magnitude não pode ser obra de um único indivíduo, por mais que lhe atribuam poderes sobre-humanos. Essa é uma “explicação” que, na realidade, não explica nada. Em vez de ciência política, lembra mais o obscuro reino da demonologia.Em tom apocalíptico, The Guardian escreveu:“Sob Trump, a agenda global mudará, quer gostemos ou não. A batalha contra o colapso climático levará um soco no estômago, as relações internacionais se tornarão mais transacionais, a luta da Ucrânia contra a agressão russa poderá ser apunhalada pelas costas e Taiwan encarará o cano de uma arma chinesa. As democracias liberais em todos os lugares, incluindo a Grã-Bretanha, também ficarão sob o novo cerco de seus próprios imitadores de Trump, alimentados pelas mídias sociais que desprezam a verdade.“Os eleitores americanos cometeram uma coisa terrível e imperdoável esta semana. Não devemos hesitar em afirmar que se afastaram do ethos e das regras compartilhadas que moldaram o mundo, geralmente para melhor, desde 1945. Os americanos concluíram que Trump não é ‘esquisito’, como era moda afirmar inicialmente, mas um tipo convencional. Os eleitores saíram na terça-feira e votaram de forma peculiar, em grande número. Os americanos agora devem viver com as consequências disso.” (The Guardian, 6 de novembro de 2024)Então, aí estamos! The Guardian, a mais repulsiva e descarada expressão da hipocrisia liberal, culpa diretamente o povo americano, que cometeu o pecado imperdoável de votar, em uma eleição democrática livre e justa, em um candidato que não lhe agrada.Mas como explicar tal aberração? Segundo The Guardian, com a cara mais séria do mundo, é o resultado da suposta “esquisitice” do povo americano. A definição de “esquisitice” é, evidentemente, qualquer coisa que não coincida com os preconceitos do conselho editorial do jornal.O que eles realmente querem dizer é que o eleitorado americano — isto é, milhões de homens e mulheres comuns da classe trabalhadora — não está realmente apto a exercer o direito ao voto, uma vez que é organicamente “esquisito”.Falando com clareza: todos os americanos seriam, por natureza, inclinados ao racismo, ao ódio às minorias e a uma aversão incompreensível aos princípios do liberalismo burguês. Isso os tornaria, portanto, naturalmente avessos à democracia e inclinados ao fascismo — representado, é claro, por Donald Trump.Mas de onde vem essa “esquisitice”? E os mesmos eleitores americanos também eram “esquisitos” quando votaram em Joe Biden ou em Obama? Evidentemente, naquela época, eram perfeitamente racionais. O que mudou?O que há de verdadeiramente estranho aqui não é a conduta dos eleitores americanos — cujas decisões foram, na realidade, bastante racionais e podem ser facilmente compreendidas — mas sim as contorções mentais da miserável tribo pequeno-burguesa de escribas liberais, cujo compromisso com a democracia, ao que tudo indica, termina assim que o eleitorado vota “da maneira errada”.Sua concepção de democracia — de que só se pode apoiar eleições se elas resultarem na eleição de candidatos que sejam do nosso agrado — parece-me um tanto “esquisita”. No entanto, ela recebeu uma confirmação impressionante no cancelamento da recente eleição na Romênia.As autoridades romenas anularam o primeiro turno da eleição presidencial em dezembro simplesmente porque não gostaram do fato de um candidato que desaprovavam, Călin Georgescu, ter vencido. Não satisfeitos com isso, impediram-no de competir na reprise da eleição presidencial do país em maio.Essas ações contaram com o apoio total da liderança da UE em Bruxelas. Sem dúvida, The Guardian também aplaudiu o cancelamento da eleição com todo o entusiasmo possível. Esta é, obviamente, a maneira de evitar que pessoas como Donald Trump ganhem eleições!Viva! Três vivas pela democracia!O fascismo chegou!Desde o início, a mídia lançou uma campanha barulhenta, denunciando Trump como fascista. Aqui estão alguns exemplos retirados aleatoriamente da imprensa:Le Monde: “As primeiras semanas de Trump como presidente foram suficientes para dar ao pesadelo da virada da América para o fascismo uma sensação de realidade.”The New Statesman: “Os Estados Unidos podem resistir ao fascismo?”The New Yorker: “O que significa Donald Trump ser fascista?”The Guardian: “O neofascismo de Trump está aqui agora. Aqui estão dez coisas que você pode fazer para resistir.”Figuras do establishment também se manifestaram da mesma forma. Mark Milley, um general aposentado do Exército dos Estados Unidos que serviu como 20º presidente do Estado-Maior Conjunto, emitiu um aviso alarmante para a América:“Ele é a pessoa mais perigosa de todos os tempos. Eu tinha suspeitas quando falei com você sobre seu declínio mental e assim por diante, mas agora percebo que ele é um fascista total. Ele agora é a pessoa mais perigosa para este país.”Kamala Harris concordou que Trump era um fascista, embora Joe Biden tenha se limitado a descrever Trump apenas como um “semifascista”.No entanto, ele alertou repetidamente que Trump representa um perigo para a democracia — uma opinião compartilhada por muitos, como o Procurador-Geral do Arizona, que conclui da seguinte forma: “Estamos à beira de uma ditadura.”Anthony Scaramucci, que serviu brevemente como secretário de imprensa da Casa Branca sob Donald Trump, expressou-se com maior franqueza, dizendo simplesmente: “Ele é um fascista de merda — ele é o fascista dos fascistas.”Previsivelmente, muitas figuras proeminentes da “esquerda” se juntaram ao coro de denúncia com suas vozes estridentes. Alexandria Ocasio-Cortez (que é frequentemente apresentada como uma democrata “socialista”) lamenta:“Estamos às vésperas de uma administração autoritária. É assim que o fascismo do século XXI está começando a se parecer.”E assim, a tediosa ladainha continua, dia após dia, sem fim. A intenção é bem clara: a repetição constante da mesma ideia acabará convencendo as pessoas de que ela deve ser verdadeira. Essas nuvens ondulantes de ar quente produzem muito calor, mas pouca luz.O que é fascismo?Agora está perfeitamente claro que, aqui, o termo “fascismo” não é entendido como uma definição científica, mas meramente como um insulto vulgar — aproximadamente equivalente a “filho da puta” ou palavras desse tipo.Esse tipo de invectiva pode servir a um propósito útil, permitindo que indivíduos frustrados extravasem e descarreguem sua raiva contra alguém que não é do seu agrado. Eles instantaneamente sentem uma sensação de alívio psicológico e vão para casa satisfeitos, convencidos de que, de alguma forma, avançaram na causa da liberdade, marcando uma tremenda vitória política sobre o inimigo.É triste dizer, mas, no sentido prático, tais vitórias são desprovidas de qualquer valor. Esse radicalismo terminológico é meramente uma expressão de raiva impotente. Incapaz de desferir golpes reais contra o inimigo odiado, obtém-se uma sensação de satisfação pelo simples artifício de lançar insultos de uma distância segura.Para aqueles de nós que estão interessados em travar batalhas reais contra inimigos reais, em vez de lutar contra moinhos de vento como o Dom Quixote, outras armas mais sérias são necessárias. O primeiro requisito para um verdadeiro comunista é a posse de um rigoroso método científico de análise.O marxismo é uma ciência. E, como todas as ciências, possui uma terminologia científica. Palavras como “fascismo” e bonapartismo têm, para nós, significados precisos. Não são meros termos de insulto ou rótulos que podem ser convenientemente aplicados a qualquer indivíduo que não tenha nossa aprovação.Vamos começar com uma definição precisa de fascismo. No sentido marxista, o fascismo é um movimento contrarrevolucionário — um movimento de massa composto principalmente pelo lumpemproletariado e pela pequena burguesia enfurecida. Ele é usado como um aríete para esmagar e atomizar a classe trabalhadora e estabelecer um estado totalitário no qual a burguesia entrega o poder do Estado a uma burocracia fascista.A principal característica do Estado fascista é a centralização extrema e o poder estatal absoluto, no qual os bancos e os grandes monopólios são protegidos, mas submetidos a um forte controle central por uma grande e poderosa burocracia fascista. Em “O que é o Nacional-Socialismo?“, Trotsky explica:“O fascismo alemão, assim como o fascismo italiano, elevou-se ao poder nas costas da pequena burguesia, a qual transformou em um aríete contra as organizações da classe trabalhadora e as instituições da democracia. Mas o fascismo no poder é, menos ainda, o governo da pequena burguesia. Pelo contrário, é a ditadura mais implacável do capital monopolista.”Essas, em termos gerais, são as principais características do fascismo. Como isso se compara à ideologia e ao conteúdo do fenômeno Trump? Já tivemos a experiência de um governo Trump, que, de acordo com os terríveis avisos dos democratas e de todo o establishment liberal, procederia à abolição da democracia. Mas ele não fez nada disso.Nenhuma medida foi tomada para limitar o direito de greve e manifestação, muito menos para abolir os sindicatos livres. As eleições ocorreram como de costume e, finalmente, embora em meio a um alvoroço geral, Trump foi sucedido por Joe Biden em uma eleição. Diga o que se quiser sobre o primeiro governo Trump, mas ele não teve nenhuma relação com qualquer tipo de fascismo.O principal ataque à democracia foi, de fato, liderado por Biden e os democratas, que fizeram esforços extraordinários para perseguir Donald Trump, mobilizando todo o judiciário para arrastá-lo aos tribunais por inúmeras acusações, com a intenção de indiciá-lo a todo custo, colocá-lo atrás das grades e, assim, impedi-lo de concorrer novamente à presidência.Toda a mídia foi mobilizada em uma campanha impiedosa e consistente de calúnias e difamação, o que, eventualmente, criou um clima no qual pelo menos duas tentativas foram feitas contra sua vida. Somente por acaso ele escapou do assassinato real (embora normalmente atribuísse sua sobrevivência à proteção do Todo-Poderoso).Uma utopia reacionáriaA ideologia do trumpismo — na medida em que possa ser definida — está muito longe do fascismo. Longe de desejar um Estado forte, o ideal de Donald Trump é o capitalismo de livre mercado, no qual o Estado desempenha um papel mínimo ou nenhum.Seu programa representa uma tentativa de retornar às políticas de Roosevelt — não de Franklin Delano Roosevelt, o autor do New Deal, mas de Theodore Roosevelt, que foi presidente antes da Primeira Guerra Mundial.Em 10 de janeiro, um artigo no Le Monde declarava:“Há uma sensação de déjà vu no ar. Donald Trump chocou seus aliados na terça-feira, 7 de janeiro, ao não descartar o uso da força para retomar o Canal do Panamá ou comprar a Groenlândia. Com esse blefe, o presidente eleito está revivendo a velha tradição do imperialismo dos EUA na virada do século XX.“A ‘era de ouro’, que começou após a Guerra Civil, é aquela com a qual Trump sonha: marcada pela acumulação de fortunas colossais, corrupção generalizada e tarifas isolacionistas que protegiam a indústria dos EUA e evitavam o imposto sobre a renda.“Acima de tudo, foi definida pelo imperialismo para garantir a hegemonia dos EUA sobre o Hemisfério Ocidental. Durante esse período, os EUA compraram o Alasca dos russos (1867), invadiram Cuba, Porto Rico e as Filipinas — ‘libertadas’ em 1898 do colonialismo espanhol — e cavaram o Canal do Panamá, concluído em 1914.”Em outras palavras, Donald Trump deseja voltar o relógio cem anos para uma América imaginária que existia antes da Primeira Guerra Mundial — uma América onde os negócios prosperavam e os lucros disparavam, onde a livre iniciativa florescia e o Estado permanecia em segundo plano, onde os EUA se sentiam livres para exercer sua força jovem e poderosa a fim de dominar o México, o Panamá e todo o Hemisfério Ocidental, expulsando o decrépito colonialismo espanhol de Cuba e transformando-a em uma colônia americana.O que quer que se pense sobre isso, é um modelo que tem muito pouco a ver com o fascismo. E essa atraente visão da história carece de qualquer substância real ou relevância para o mundo do século XXI.A era de Theodore Roosevelt foi uma época em que o capitalismo ainda não havia esgotado completamente seu potencial como sistema econômico progressista. Os EUA, uma nação saudável, dinâmica e recentemente industrializada, que já havia estabelecido superioridade sobre as antigas potências da Europa, estava apenas começando a se afirmar como uma potência decisiva no mundo.Uma era inteira se passou desde então, e os EUA estão diante de uma configuração de forças totalmente diferente, tanto interna quanto externamente. Os esforços de Trump para fazer o relógio voltar ao mundo como era naqueles dias distantes estão fadados ao fracasso, naufragados pela situação mundial alterada e pelo novo equilíbrio de forças de classe dentro dos EUA. É, de fato, uma utopia reacionária.Voltaremos a esses pontos mais tarde. Mas, primeiro, precisamos acertar as contas com as tentativas histéricas e totalmente errôneas, tanto da esquerda quanto da direita, de explicar o misterioso fenômeno Donald J. Trump.Um método errado“A grande importância prática de uma orientação política correta se manifesta com mais evidência nas épocas de conflitos sociais agudos, rápidos giros políticos ou mudanças repentinas na situação. Nesses períodos, as concepções e generalizações políticas são rapidamente superadas e exigem sua substituição total — o que é mais fácil — ou sua concretização, precisão ou retificação parcial — o que é mais difícil. Precisamente nesses momentos, surgem inevitavelmente todo tipo de combinações e situações transitórias, intermediárias, que superam os padrões habituais e exigem atenção teórica contínua e redobrada. Em uma palavra, se na época pacífica e “orgânica” (antes da guerra) ainda seria possível viver às custas de algumas abstrações pré-concebidas, na nossa época cada novo acontecimento exige forçosamente a lei mais importante da dialética: a verdade é sempre concreta.” (“Bonapartismo e Fascismo”, Leon Trotsky, 1934)Muitas vezes, percebo que quando pessoas da esquerda se deparam com um novo fenômeno — algo que parece desafiar todas as normas e definições existentes — elas tendem a procurar rótulos. E então, após encontrar um rótulo conveniente, buscam os fatos para validá-lo.Elas dizem: “Ah, sim. Eu sei o que é isso. Isso é isso, ou aquilo — fascismo, bonapartismo ou qualquer outra coisa que lhes ocorra.” Esse é um método errado. É o oposto do materialismo dialético, e não leva a lugar nenhum. Trata-se de um exemplo de pensamento preguiçoso — a busca por soluções fáceis para questões novas e complexas.Longe de esclarecer algo, esse método apenas distrai a atenção das questões reais e nos conduz a uma discussão interminável e sem sentido sobre questões introduzidas artificialmente, que só aumentam a confusão, em vez de fornecer respostas claras.Nos seus “Cadernos Filosóficos”, Lênin explicou que a lei fundamental da dialética é a objetividade absoluta na consideração: “não exemplos, não digressões, mas a coisa em si.”Essa é a essência do método dialético. O oposto da dialética é o hábito de colar rótulos em algo e imaginar que, ao fazer isso, o compreendemos.Meu bom amigo John Peterson comentou recentemente comigo que Donald Trump era “um fenômeno”. Acho que isso está correto. Não há necessidade de compará-lo a nenhuma outra figura histórica. Devemos aceitar que Donald Trump é… Donald Trump. E devemos tomá-lo como ele é, analisando o que, de fato, é um novo fenômeno, com base em fatos concretos, não em generalizações.Bonapartismo?O artigo de Trotsky “Bonapartismo e Fascismo” oferece uma definição muito precisa e concisa do bonapartismo do ponto de vista marxista:“No entanto, um governo que se eleva por cima da nação não está suspenso no ar. O verdadeiro eixo do governo atual passa pela polícia, pela burocracia e pela camarilha militar. Estamos confrontados com uma ditadura militar-policial, apenas dissimulada por trás do cenário do parlamentarismo. Um governo do sabre como juiz-árbitro da nação: precisamente isso se chama bonapartismo.”A essência do bonapartismo, que pode surgir sob vários disfarces, é, em última instância, sempre a mesma: uma ditadura militar.Em “Alemanha: o único caminho“, Trotsky explica como o bonapartismo surge:“Assim que a luta entre dois estratos sociais – os que têm e os que não têm, os exploradores e os explorados – atinge sua tensão máxima, estão estabelecidas as condições para a dominação da burocracia, da polícia, da soldadesca. O governo se torna ‘independente’ da sociedade.”Essas linhas são cristalinas. Mas como isso se compara à situação atual nos Estados Unidos? Não se compara de forma alguma. Vamos ser claros sobre isso. A classe dominante só recorrerá à reação na forma de bonapartismo ou fascismo como último recurso. Será que esta é realmente a situação atual?Tensões poderosas, sem dúvida, existem na sociedade americana e estão causando uma séria desestabilização da ordem existente.Mas imaginar que a luta de classes atingiu o estágio crítico, onde o governo do capital está ameaçado de derrubada imediata e a única solução para a classe dominante é entregar o poder a um regime bonapartista é pura fantasia. Ainda não chegamos a esse estágio, ou a algo parecido.Claro, é possível apontar para este ou aquele elemento na situação atual que poderia ser considerado como um traço de bonapartismo. Pode ser. Mas comentários semelhantes poderiam ser feitos sobre quase qualquer regime democrático burguês recente.Na Grã-Bretanha “democrática” sob Tony Blair, o poder passou, na prática, do parlamento eleito para o Gabinete, e do Gabinete para uma pequena camarilha de funcionários não eleitos, comparsas e assessores de imprensa. Havia, sem dúvida, elementos do que poderia ser chamado de regime de bonapartismo parlamentar.No entanto, conter certos elementos de um fenômeno ainda não significa o surgimento real desse fenômeno como tal. Pode-se, é claro, dizer que há elementos de bonapartismo presentes no trumpismo. Sim, pode-se dizer isso. Mas os elementos ainda não representam um fenômeno totalmente desenvolvido.Como Hegel observa na “Fenomenologia“:“Quando queremos ver um carvalho com todo o vigor de seu tronco, seus galhos espalhados e a massa de folhagem, não nos conformamos com que nos mostrem uma bolota.”Este método incorreto leva a erros infinitos. Primeiro, tenta-se aplicar uma definição externa a um fenômeno. Depois, apega-se a ela a todo custo. E tenta-se justificá-la por todos os tipos de exemplos “inteligentes” da história, que são arrastados pelos cabelos.Então, como a noite segue o dia, outra pessoa aparece e diz: não, não, isso não é bonapartismo. E produzem fatos igualmente “inteligentes”, a fim de demonstrar que o bonapartismo é algo completamente diferente.Ambos estão igualmente certos e errados. Aonde chegamos quando entramos neste tipo de argumento circular? Como um cachorro perseguindo seu próprio rabo, não chegamos a lugar nenhum.Embora seja verdade que o uso de analogias históricas precisas às vezes possa oferecer esclarecimentos, também é verdade que a justaposição irrefletida e mecânica de fenômenos essencialmente diferentes é uma receita certa para a confusão.Por exemplo, acredito que seria bastante correto e apropriado descrever o regime de Putin na Rússia como um regime bonapartista burguês. Esse é um exemplo de uma analogia útil. Mas, no caso de Trump, é mais complicado do que isso.O problema é que o bonapartismo é um termo muito elástico. Ele abrange uma ampla gama de coisas, começando com o conceito clássico de bonapartismo, que é basicamente governar pela espada.O atual governo Trump em Washington, apesar de suas muitas peculiaridades, ainda continua sendo o de uma democracia burguesa.São precisamente essas peculiaridades que devemos examinar e explicar. E, como, com toda a honestidade, nos encontramos incapazes de encontrar algo remotamente semelhante na história — antiga ou moderna — que se possa comparar, e como não temos definições prontas que possam ser adaptadas, só nos resta uma alternativa: COMEÇAR A PENSAR.A crise do capitalismoO grande filósofo Spinoza afirmou que a tarefa da filosofia não é nem chorar, nem rir, mas compreender. Para compreender Donald J. Trump, devemos deixar de lado a pseudociência da demonologia e declarar o óbvio.Para começar, seja lá o que for, Trump não é um espírito maligno dotado de poderes sobre-humanos. Ele é um simples mortal — na medida em que um bilionário americano pode ser considerado como tal. E, como qualquer outra figura relevante na história, as causas reais de sua ascensão ao poder devem, em última análise, estar conectadas a processos objetivos em ação na sociedade.Em outras palavras, devemos vê-lo como inevitavelmente ligado à situação objetiva do mundo nas primeiras décadas do século XXI.O principal ponto de virada na história moderna foi a crise de 2008, que desestabilizou completamente todo o sistema. O capitalismo se viu oscilando à beira do colapso. Quando o Lehman Brothers quebrou, lembro-me vividamente do momento em que banqueiros expressaram publicamente seus temores de que, dentro de alguns meses, poderiam estar balançando pendurados nos postes de luz.Esses temores eram realmente bem fundamentados. Na verdade, todas as condições objetivas estavam maduras para uma revolução socialista. Ela só foi evitada pela adoção de medidas emergenciais, nas quais o Estado interveio para salvar os bancos por meio da injeção de enormes quantidades de dinheiro público.Isso contradizia todas as teorias promovidas pelos economistas burgueses oficiais nos trinta anos anteriores. Todos concordavam que o Estado não deveria desempenhar nenhum papel — ou, no máximo, um papel mínimo — na economia. O mercado livre, deixado por si mesmo, resolveria todos os problemas.No entanto, no momento da verdade, essa teoria se mostrou falsa. O sistema capitalista só foi salvo pela intervenção do Estado. Mas isso criou novas contradições, na forma de dívidas colossais e, em última análise, insustentáveis.Desde 2008, o sistema capitalista atravessa a crise mais profunda de sua história. Ele cambaleia constantemente de um desastre para outro. A cada passo, os governos recorrem à mesma política irresponsável de financiamento do déficit — ou seja, imprimem dinheiro para sair dos apuros.Os estrategistas míopes do capital, a tribo miserável de economistas burgueses e os políticos de um establishment ainda mais falido assumiram que essa situação — suprimentos infinitos de dinheiro arrancados do nada, um fluxo inesgotável de crédito barato, baixas taxas de inflação e juros reduzidos — continuaria para sempre. Estavam enganados.Tudo isso apenas acumulava contradição sobre contradição, preparando o terreno para a mãe de todas as crises no futuro.Na época, previ que todas as tentativas da burguesia de restaurar o equilíbrio econômico serviriam apenas para destruir o equilíbrio social e político. Foi exatamente isso que aconteceu.As condições objetivas para a revolução socialista estavam claramente presentes. Por que ela não ocorreu? Porque um fator essencial faltava nessa equação: a liderança revolucionária.Por um período inteiro, o pêndulo oscilou bruscamente para a esquerda em um país após o outro. Isso se refletiu na ascensão de uma série de movimentos de esquerda que soavam radicais: Podemos, na Espanha; Syriza, na Grécia; Bernie Sanders, nos EUA; e, acima de todos, Jeremy Corbyn, na Grã-Bretanha. Mas isso apenas expôs as limitações do reformismo de esquerda.Tomemos o caso de Tsipras. Toda a nação grega o apoiou em seu desafio às tentativas de Bruxelas de impor a austeridade. Mas ele capitulou. O resultado foi uma guinada à direita.Na Espanha, a história foi semelhante. O Podemos, inicialmente, apresentou uma imagem de esquerda bastante radical. Mas seus líderes decidiram ser “responsáveis” e entraram em uma coalizão com os socialistas, com resultados previsíveis.Nos EUA, Bernie Sanders emergiu rapidamente, do nada, para criar um movimento de massa que claramente buscava uma alternativa socialista. Ele tinha todas as condições para construir uma oposição viável aos democratas e republicanos. Mas, no fim, capitulou diante do establishment do Partido Democrata, e a oportunidade foi abortada.O caso mais emblemático ocorreu na Grã-Bretanha, onde, assim como Sanders, Jeremy Corbyn surgiu inesperadamente e foi impulsionado à liderança do Partido Trabalhista pela força de um poderoso movimento à esquerda. O próprio Corbyn não criou esse movimento, mas tornou-se um ponto de referência para o clima acumulado de raiva e descontentamento na sociedade.O resultado surpreendeu e aterrorizou a classe dominante. Seus representantes chegaram a declarar publicamente que haviam perdido o controle do Partido Trabalhista — e isso era verdade. Ou melhor, deveria ser.Mas, no momento decisivo, Corbyn falhou em agir contra a ala direitista do Partido Trabalhista no Parlamento, que, com o apoio da mídia burguesa, organizou uma campanha brutal contra ele.Em última instância, Corbyn capitulou diante da direita e pagou o preço por sua covardia — que, na verdade, reflete a fraqueza estrutural do reformismo de esquerda.Trump e CorbynAqui, vemos um contraste marcante com Donald Trump, que também sofreu um ataque severo do establishment, incluindo a liderança de seu próprio Partido Republicano. Mas ele fez o que Corbyn deveria ter feito: mobilizou sua base e a voltou contra a velha liderança republicana, forçando-a a recuar.Isso, é claro, não altera o fato de que Trump continuou sendo um político burguês reacionário. Mas é preciso reconhecer que ele demonstrou uma coragem e determinação das quais Corbyn manifestamente carecia.Trump também mostrou total desprezo pelo politicamente correto e pela política de identidade — algo que, infelizmente, os reformistas de esquerda abraçaram sem reservas. Isso teve um impacto particularmente destrutivo no caso de Corbyn.Quando a direita o atacou com acusações infundadas de antissemitismo, ele imediatamente recuou. Tornou-se uma presa fácil para o lobby sionista reacionário e para toda a classe dominante britânica, sendo rapidamente reduzido à completa e abjeta submissão — uma vítima indefesa do vício nas políticas identitárias reacionárias.Se Corbyn tivesse seguido o exemplo de Trump, teria enfrentado a acusação de antissemitismo de frente, mobilizado sua base e a lançado contra o establishment de direita do Partido Trabalhista, promovendo um expurgo completo dos elementos apodrecidos.Se o tivesse feito, sem dúvida teria vencido. Mas não o fez. Isso permitiu que a direita trabalhista assumisse a ofensiva, expulsasse a esquerda — incluindo o próprio Corbyn — e promovesse um expurgo completo dentro do partido. O resultado foi a ascensão de Keir Starmer e o colapso do experimento corbynista.O mesmo processo se repetiu diversas vezes. E, em todos os casos, os líderes da esquerda desempenharam um papel lamentável. Decepcionaram sua base e entregaram o poder de bandeja à direita.É esse fato — e somente esse — que explica a atual guinada à direita. Dada a capitulação covarde da esquerda, esse desfecho era inevitável.Que outros lamentem os fatos e se queixem da ascensão de Trump e de outros demagogos de direita. Respondemos com desprezo: não reclamem. A responsabilidade é inteiramente de vocês. Francamente, tiveram o que mereciam. Agora, todos nós pagamos o preço pelas consequências.O que Trump realmente representa?Comecemos pelo óbvio. Todos podemos concordar que Donald Trump é um político burguês reacionário — e nem vale a pena repetir isso. Tampouco deveríamos precisar reafirmar que os comunistas não o apoiam de forma alguma.Mas limitar-se ao óbvio não nos faz avançar um único passo na análise do fenômeno de Trump e do trumpismo. Por exemplo, é correto afirmar que não há diferença entre Donald Trump e Joseph Biden?É evidente que ambos são políticos burgueses que defendem essencialmente os mesmos interesses de classe. Nesse sentido, pode-se dizer que são todos iguais. No entanto, até mesmo o mais cego dos cegos deve reconhecer que há, de fato, diferenças muito sérias entre os dois — um verdadeiro abismo os separa.O fato de que, em última instância, ambos os homens são políticos burgueses e representam os mesmos interesses de classe não exclui a possibilidade de surgirem profundas diferenças entre distintas camadas dessa mesma classe. Na verdade, esse tipo de conflito sempre existiu.O problema central para a burguesia é que o modelo que garantiu o sucesso do capitalismo por muitas décadas está irrevogavelmente quebrado.O fenômeno da globalização, que por muito tempo permitiu à burguesia superar os limites do mercado nacional, atingiu seus próprios limites. Em seu lugar, assistimos à ascensão do nacionalismo econômico: cada classe capitalista busca avançar seus próprios interesses nacionais em detrimento dos de outras nações. A era do livre comércio dá lugar à era das tarifas e das guerras comerciais.Nostálgicos sem esperança lamentam o desaparecimento da velha ordem. Donald J. Trump, por outro lado, a descarta com o entusiasmo de um convertido religioso. Como resultado, ele virou a ordem mundial de cabeça para baixo, despertando a ira e a frustração das nações mais fracas.Trump, portanto, atrai as maldições de seus antigos “aliados” na Europa, que o culpam por todos os seus infortúnios. Mas ele não inventou essa situação; é apenas seu expoente mais extremo e consistente.A bancarrota do liberalismoPor muitos anos, a classe dominante e seus representantes políticos no Ocidente têm vendido sistematicamente uma imagem pseudo-progressista para mascarar a realidade da dominação de classe. Com habilidade, fizeram da chamada política de identidade uma arma contrarrevolucionária.E a “esquerda”, sem uma base ideológica firme própria, engoliu esse lixo por completo. Isso apenas serviu para desacreditá-la aos olhos da classe trabalhadora, que observa com incredulidade suas atitudes, discutindo palavras e repetindo sem cessar as banalidades da chamada correção política, em vez de lutar pelos reais interesses dos trabalhadores, das mulheres e de outros setores oprimidos da sociedade.Não é de surpreender, portanto, que quando Donald Trump surge denunciando a política identitária e o politicamente correto, suas palavras encontrem ressonância entre milhões de homens e mulheres comuns, cujas mentes não foram irremediavelmente afetadas pela enfermidade pós-modernista.Os liberais defendem a democracia?Os liberais têm uma visão muito peculiar da democracia. Como vimos, eles apoiam as eleições — mas apenas quando o candidato que defendem sai vitorioso. Se o resultado não lhes agrada, imediatamente começam a clamar sobre fraude eleitoral e práticas obscuras, geralmente sem apresentar qualquer prova concreta.Vimos isso após a vitória de Trump sobre Hillary Clinton na eleição presidencial de 2016. Trump se tornou o primeiro presidente na história dos Estados Unidos a assumir o cargo sem experiência prévia no governo ou histórico militar.Na verdade, ele era um outsider, alguém sem vínculos com o establishment de Washington, que detém o monopólio do poder político há décadas.O enxergaram como uma ameaça e agiram para subverter a democracia e anular o resultado da eleição. Os democratas lançaram o notório escândalo do “Russiagate“1 contra Trump, com a clara intenção de removê-lo do cargo.Isso equivaleria a um golpe de Estado democrático. Uma violação da democracia? Sem dúvida. Mas, para eles, se for necessário violar as regras da democracia para “protegê-la”, que assim seja!Mais tarde, fizeram de tudo para impedir que Trump retornasse à presidência, lançando uma avalanche de processos judiciais com o objetivo de colocá-lo atrás das grades.Foram movidas quatro ações contra Trump pessoalmente, começando pelo notório caso Stormy Daniels, seguido pela acusação de interferência eleitoral na Geórgia e, finalmente, a questão da posse de documentos confidenciais em Mar-a-Lago.Além disso, houve mais de 100 ações judiciais contra a administração de Trump.A grande mídia foi mobilizada para tirar o máximo proveito do ataque, mas falhou completamente. Cada um desses casos serviu apenas para aumentar seu apoio nas pesquisas. O resultado final foi visto na eleição presidencial de 5 de novembro de 2024.Com a segunda maior participação eleitoral desde 1900 (perdendo apenas para a eleição de 2020), Trump obteve 77.284.118 votos, ou 49,8% dos votos, o segundo maior total de votos na história dos EUA (depois da vitória de Biden em 2020). Trump venceu em todos os sete estados indecisos.Esta não foi apenas uma vitória eleitoral; foi um triunfo decisivo. Foi também uma rejeição completa do establishment democrata liberal.Foi, ainda, uma rejeição devastadora à mídia corporativa, que apoiou Harris de forma esmagadora. Entre os jornais diários, 54 endossaram Harris e apenas 6 apoiaram Trump. De todos os jornais semanais, 121 apoiaram Harris e apenas 11 foram para Trump.Como isso pode ser explicado?Trump e a classe trabalhadoraÉ impressionante notar a diferença na composição de classe dos votos emitidos. Enquanto Harris conquistou a maioria dos eleitores que ganham US$ 100 mil ou mais, Trump conquistou a maioria dos eleitores que ganham menos de US$ 50 mil. Portanto, não há absolutamente nenhuma dúvida de que milhões de trabalhadores americanos votaram em Donald Trump.Não há nada particularmente surpreendente ou “estranho” nisso. O apelo de Trump à classe trabalhadora tem uma base material. Desde o início dos anos 1980, os salários reais dos americanos da classe trabalhadora permaneceram os mesmos ou diminuíram, principalmente porque os empregos foram terceirizados para outros países, de acordo com o Bureau of Labor Statistics. Da mesma forma, o Economic Policy Institute relata que os salários das famílias de baixa e média renda tiveram pouco ou nenhum crescimento desde o final dos anos 1970, enquanto o custo de vida continuava a aumentar.Em muitas cidades americanas, as condições de miséria e sordidez se assemelham às das cidades mais pobres da América Latina, África ou Ásia. E essa pobreza existe lado a lado com a mais obscena concentração de riqueza em poucas mãos já vista em cem anos.No entanto, tudo isso é aparentemente invisível para os “progressistas” de classe média. O establishment político e a tribo de jornalistas e comentaristas bem pagos têm permanecido tão fixados no veneno pernicioso da política identitária que consistentemente ignoram os problemas reais enfrentados pelas pessoas da classe trabalhadora, sejam elas negras ou brancas, homens ou mulheres, heterossexuais ou gays.Um exemplo típico foi a insistência dos defensores do politicamente correto em promover termos como “Latinx” para promover a inclusão de gênero. No entanto, apenas 4% dos hispânicos usam esse termo, e 75% dizem que ele nunca deve ser usado, de acordo com a Pew Research.Estava, portanto, aberto o caminho para que demagogos de direita como Donald Trump dessem voz à raiva acumulada de milhões de pessoas que se sentiam justificadamente ignoradas pelo establishment liberal em Washington.Como resultado, em 2024, Trump expandiu sua base ao se conectar com comunidades negras e latinas da classe trabalhadora.Essa é a consequência direta da traição de membros da “esquerda” como Sanders, que, ao não oferecer nenhuma alternativa clara aos liberais, deixou a porta aberta para demagogos de direita como Trump.É um fato inegável que, até recentemente, até mesmo o termo “classe trabalhadora” raramente aparecia na propaganda eleitoral dos principais partidos. Mesmo a esquerda mais ousada normalmente se referia à “classe média”. A classe trabalhadora americana, para todos os efeitos práticos, havia deixado de existir!Pode ter havido exceções, mas não é exagero dizer que foi Donald Trump — um bilionário, demagogo de direita — quem sozinho alegou defender os interesses da classe trabalhadora em seus discursos. Poder-se-ia afirmar que ele foi o responsável por colocar os trabalhadores no centro da política americana mais uma vez.Não precisamos ser avisados de que isso é mera demagogia, uma retórica vazia sem substância. Nem precisamos ser lembrados de que Trump diz essas coisas para seus próprios interesses, que estão inevitavelmente conectados à classe à qual ele pertence.Isso está perfeitamente claro para nós. Mas isso é totalmente irrelevante. O fato é que isso estava longe de estar claro para os milhões de trabalhadores que votaram em Trump nas eleições presidenciais. Negligenciarmos esse fato seria um erro grave, por nossa conta e risco.Quais interesses Trump defende?Não deveria ser difícil explicar nossa atitude em relação a Trump para qualquer pessoa que pense. É realmente muito simples. Dizemos:Este bilionário defende os interesses de sua própria classe. Tudo o que ele disser será, em última análise, do seu próprio interesse e dos interesses dos ricos – banqueiros e capitalistas. É lógico, assim como a noite segue o dia, que esses interesses nunca podem ser os interesses da classe trabalhadora.No entanto, para ganhar o apoio dos trabalhadores, ele às vezes dirá coisas que parecem fazer sentido para eles. Quando fala de empregos, postos de trabalho, queda de salários, aumento de preços, ele naturalmente recebe uma resposta positiva.E pode muito bem ser que uma ou duas coisas que ele diga estejam corretas. De fato, Trump uma vez admitiu que havia tirado várias ideias dos discursos de Sanders e as usou para apelar aos trabalhadores.Sem dúvida, Trump é um político burguês reacionário, mas isso não significa que ele seja exatamente igual a qualquer outro político burguês reacionário. Pelo contrário, ele tem sua própria interpretação das coisas, sua própria perspectiva, política e estratégia, que diferem de muitas maneiras fundamentais, por exemplo, das posições de Joe Biden e sua camarilha.Em alguns aspectos, as visões de Trump podem parecer coincidir, pelo menos até certo ponto, com as nossas. Por exemplo, sua atitude em relação à guerra na Ucrânia, sua dissolução da Usaid ou sua rejeição ao chamado “woke“. O fato de existirem algumas coincidências entre o que os políticos burgueses dizem e o que nós mesmos pensamos já foi explicado por Trotsky.Em maio de 1938, ele escreveu um artigo intitulado “Aprendam a pensar – Uma sugestão amistosa a certos ultra-esquerdistas“.Nele, lemos o seguinte:“Em noventa casos em cem, os trabalhadores realmente colocam um sinal de menos onde a burguesia coloca um sinal de mais. Em dez casos, no entanto, eles são forçados a fixar o mesmo sinal da burguesia, mas com seu próprio selo, no qual é expressa sua desconfiança da burguesia. A política do proletariado não é de forma alguma derivada automaticamente da política da burguesia, tendo apenas o sinal oposto – isso faria de todo sectário um mestre em estratégia; não, o partido revolucionário deve, a cada vez, orientar-se independentemente na situação interna e externa, chegando às decisões que melhor correspondam aos interesses do proletariado. Esta regra se aplica tanto ao período de guerra quanto ao período de paz.”Mesmo quando Trump diz coisas que são corretas, ele invariavelmente o faz do ponto de vista de seus próprios interesses de classe e para propósitos reacionários com os quais não temos absolutamente nada em comum.O ponto principal é que, em todos os casos, sempre enfatizamos a posição de classe. Por essa razão, é totalmente inadmissível nos identificarmos com as políticas de Trump. Isso seria um erro crasso.Mas seria um erro muito mais grave — na verdade, um crime — aliar-se, mesmo que por um momento, aos chamados elementos burgueses “liberais” e “democráticos”, cujos ataques a Trump são guiados inteiramente pelo ponto de vista do establishment burguês reacionário contra o qual Trump está travando guerra no momento.O mal menor?Uma vez que se cede a acusações como fascismo, bonapartismo e a suposta ameaça à democracia, começa-se a entrar na ladeira escorregadia que pode, mesmo inconscientemente, levar à posição do mal menor. E esse é, sem dúvida, o maior perigo.É correto afirmar que o regime Biden representou algo progressista em relação a Trump? Foi assim que o venderam. E a chamada esquerda aceitou isso como uma boa moeda.Eles tentam argumentar que Trump é um inimigo da democracia. Mas, se alguém examinar a conduta monstruosa da camarilha de Biden, verá como ela demonstrou um completo desprezo pela democracia até o fim.Considerem o chamado apoio “de ferro” de Biden ao ataque de Israel a Gaza – o que lhe rendeu o apelido de “Genocide Joe”. Ou a supressão flagrante do direito de reunião por sua administração “democrática”, com milhares de estudantes sendo brutalmente espancados e 3.200 presos em todo o país por protestarem pacificamente em solidariedade à Palestina.Biden prometeu ser “o presidente mais pró-sindicato da história americana”, mas esmagou o direito dos trabalhadores ferroviários de fazer greve. Ele prometeu acabar com as deportações da era Trump, mas acabou expulsando mais imigrantes indocumentados do que seu antecessor. A lista continua.Até o fim, Biden se agarrou ao cargo muito depois de ter sido efetivamente exposto como inapto para o cargo, até mesmo por seu próprio partido, que o removeu como candidato presidencial pelos democratas.Mesmo depois de a esmagadora maioria do eleitorado votar contra os democratas, ele continuou a exercer seus poderes como presidente, realizando atos flagrantes de sabotagem para minar o candidato democraticamente eleito, Trump, e até mesmo para arrastar os Estados Unidos à beira da guerra com a Rússia.Seria difícil imaginar um desrespeito mais flagrante pela democracia e pela opinião da esmagadora maioria do povo americano. No entanto, esse gangster e sua camarilha continuaram a se disfarçar como defensores da democracia contra a suposta ameaça de ditadura!Muitas outras coisas que Biden e sua gangue fizeram foram infinitamente mais contrarrevolucionárias, desastrosas e monstruosas do que qualquer coisa que Trump jamais sonhou em fazer. Essa é a realidade. No entanto, encontramos pessoas na esquerda que estão preparadas para argumentar que é preferível apoiar os democratas contra Trump, “para defender a democracia”.Não nos cabe atar-nos a um barco que afunda, mas, ao contrário, fazer tudo o que for possível para ajudar a afundá-lo. Não é nossa política semear ilusões nos liberais e em sua suposta democracia, mas expô-los como uma falsidade cínica e um engano.Em “Aonde Vai a França?“, Trotsky explica que a chamada política do “mal menor” não passa de um crime e uma traição à classe trabalhadora:“O partido da classe trabalhadora não deve dedicar-se a um esforço inútil para salvar o partido dos quebrados. Deve, ao contrário, com toda a sua força, acelerar o processo de libertação das massas da influência radical.”2Esse é um excelente conselho para nós hoje. Ao combater a reação trumpista, não podemos, sob nenhuma circunstância, nos associar aos democratas “liberais” falidos.Encontrem um caminho para os trabalhadores!Períodos de transição, como o período em que estamos vivendo agora, invariavelmente dão origem à confusão. Seremos frequentemente confrontados com todos os tipos de fenômenos novos e complicados, sem precedentes evidentes na história.Para não perdermos o equilíbrio, é necessário, em todos os momentos, manter uma mão firme nos fundamentos e não sermos desviados do curso por este ou aquele desenvolvimento acidental. A principal característica da situação atual é que, por um lado, a situação objetiva clama por uma solução revolucionária.O potencial está ali. Mas não há, no momento, nenhuma força suficientemente forte para concretizar esse potencial. Portanto, por enquanto, permanece apenas isso — um potencial à vista.As massas estão se esforçando para encontrar uma saída para a crise. Elas colocam um líder partidário após o outro à prova, mas logo descobrem as deficiências de todas as organizações existentes. Isso explica a instabilidade política geral, que se manifesta em oscilações violentas no plano eleitoral da esquerda para a direita e vice-versa.Na ausência de qualquer tipo de orientação a partir da esquerda, o caminho está aberto para todos os tipos de aberrações peculiares e para demagogos da variedade Trump.Eles podem subir rapidamente, dando expressão à raiva e ao descontentamento das massas. Mas o contato com a realidade eventualmente leva à decepção, preparando uma nova oscilação do pêndulo na direção oposta.Ver tais desenvolvimentos em termos puramente negativos seria entender completamente mal a situação. As massas estão desesperadas e precisam de soluções urgentes para seus problemas. Pessoas como Donald Trump parecem lhes oferecer o que estão procurando.Precisamos entender isso, e não simplesmente descartar tais movimentos como aberrações de “extrema direita” (uma frase sem sentido, em qualquer caso). Claro, em tais movimentos haverá elementos reacionários. Mas seu caráter de massa indica que eles têm uma base contraditória na sociedade.Para encontrar um caminho para os trabalhadores de qualquer país, é necessário aceitá-los como são – e não como gostaríamos que fossem. Para entrar em um diálogo com os trabalhadores, devemos começar com o nível de consciência existente. Qualquer outra abordagem é apenas uma receita para esterilidade e impotência.Se quisermos entabular um diálogo significativo com um trabalhador que tem ilusões em Trump, não podemos começar com denúncias estridentes ou acusações de fascismo e coisas do tipo. Ao ouvir pacientemente os argumentos desses trabalhadores, podemos nos basear nas muitas coisas com as quais concordamos e, então, usando argumentos habilidosos, gradualmente introduzir dúvidas sobre se os interesses da classe trabalhadora podem realmente ser defendidos por um rico empresário bilionário.É claro que, neste estágio, nossos argumentos não terão necessariamente êxito. A classe trabalhadora em geral não aprende com debates, mas apenas com sua própria experiência. E a experiência de um governo Trump provará ser uma curva de aprendizado muito dolorosa.Portanto, quando falarmos com trabalhadores que apoiam Trump, devemos ter uma abordagem amistosa, concordando com as coisas com as quais podemos concordar e, então, habilmente apontar as limitações do trumpismo e defender o socialismo. As contradições eventualmente virão à tona. No entanto, apesar disso, as ilusões com Trump persistirão por algum tempo.Nada será alcançado adotando uma atitude beligerante e hostil aos muitos trabalhadores honestos que, por razões absolutamente compreensíveis, se uniram à bandeira de Trump. Tal abordagem é estéril e contraproducente, e não levará a lugar nenhum.A história conhece muitos exemplos de como trabalhadores que entram pela primeira vez na arena política com visões extremamente retrógradas, até mesmo reacionárias, podem rapidamente se mover na direção oposta sob o impacto dos acontecimentos.No início da revolução de 1905 na Rússia, os marxistas eram uma minoria muito pequena e isolada. A maioria dos trabalhadores russos era politicamente atrasada, com ilusões na monarquia e na igreja. A esmagadora maioria dos trabalhadores em São Petersburgo inicialmente seguiu a liderança do Padre Gapon, que estava colaborando ativamente com a polícia. Quando os marxistas se aproximaram deles com panfletos denunciando o czar, os trabalhadores os rasgaram e às vezes até espancaram os revolucionários.No entanto, tudo isso se transformou em seu oposto após os eventos do Domingo Sangrento em 9 de janeiro. Os mesmos trabalhadores que rasgaram os panfletos agora se aproximavam dos revolucionários exigindo armas para derrubar o czar.Nos Estados Unidos, podemos citar um exemplo semelhante, embora muito menos dramático. Quando um jovem trabalhador chamado Farrell Dobbs entrou pela primeira vez na política no início dos anos 1930, ele começou sua vida como um republicano convicto. Mas, através da experiência da tempestuosa luta de classes, ele passou diretamente do republicanismo de direita para o trotskismo revolucionário, desempenhando um papel de liderança na Rebelião dos Caminhoneiros em Mineápolis.No tempestuoso período de luta de classes que se abrirá nos Estados Unidos, veremos muitos exemplos assim no futuro. E alguns dos trabalhadores que agora apoiam entusiasticamente Trump ou demagogos semelhantes podem ser conquistados para a bandeira da revolução socialista, com base nos acontecimentos futuros.Na superfície, o movimento Trump parece ser muito sólido e praticamente indestrutível. Mas isso é uma ilusão de ótica. Na realidade, é um movimento muito heterogêneo, dilacerado por profundas contradições. Mais cedo ou mais tarde, elas se tornarão manifestas.Os inimigos liberais de Trump esperam que o fracasso de suas políticas econômicas leve a uma decepção generalizada e a uma perda de apoio. Tal fracasso é totalmente previsível. A imposição de tarifas já está sendo enfrentada com inevitáveis represálias, o que eventualmente se refletirá em perdas de empregos e fechamentos de fábricas nas indústrias afetadas.No entanto, as previsões de um fim iminente do movimento Trump são prematuras. Trump despertou enormes expectativas e esperanças entre milhões de pessoas que antes estavam sem esperança. Essas ilusões estão profundamente enraizadas e são poderosas o suficiente para suportar uma série de choques e decepções temporárias.Levará tempo para que o feitiço hipnótico da demagogia de Trump se dissipe. Mas, mais cedo ou mais tarde, a desilusão se instalará, e quanto mais tempo levar para os trabalhadores entenderem que seus interesses de classe não estão sendo representados, mais violenta será a reação.Donald Trump agora está bem velho e, mesmo que consiga se esquivar de uma bala de assassino, a natureza, mais cedo ou mais tarde, imporá suas leis de ferro. De qualquer forma, é improvável que ele concorra novamente à presidência – embora as regras possam ser alteradas para permitir isso.É impossível imaginar o trumpismo sem a figura de Donald J. Trump. É precisamente o poder de sua personalidade, sua inquestionável habilidade como líder de massa e mestre demagogo, que mantém seu movimento heterogêneo unido. Sem ele, as contradições internas que existem dentro do movimento inevitavelmente virão à tona, trazendo crises internas e fraturas na liderança.J.D. Vance parece ser o sucessor mais provável de Trump, mas ele não possui a imensa autoridade e carisma de seu líder. Vance é, no entanto, um homem inteligente e pode evoluir em diversas direções com base nos acontecimentos. É impossível prever o resultado.Existe uma lei bem conhecida da mecânica que afirma que a toda ação corresponde uma reação igual e contrária. Donald Trump é um mestre da hipérbole. Suas declarações demagógicas não conhecem limites. Tudo o que ele promete é maravilhoso, tremendo, admirável, enorme, e assim por diante. E o grau da decepção, quando finalmente chegar, será igualmente enorme.Em certo ponto, seu movimento começará a se fraturar ao longo das linhas de classe. À medida que os trabalhadores começarem a abandoná-lo, os elementos pequeno-burgueses ensandecidos provavelmente se unirão no que pode se tornar o embrião de uma nova organização genuinamente fascista ou bonapartista.Diante da situação caótica, o movimento em direção a um terceiro partido se tornará inevitável. Por sua própria natureza, será um fenômeno confuso — não necessariamente com um programa de esquerda ou mesmo particularmente progressista em um primeiro momento. Mas os eventos seguirão uma lógica própria.Muitos trabalhadores, após a decepção com a experiência Trump, procurarão uma alternativa que reflita mais precisamente a raiva e o ódio profundo que sentem pelos ricos e pelo establishment — o que é, em última análise, um reflexo imaturo de sua hostilidade instintiva ao próprio sistema capitalista. Isso os empurrará para a esquerda.Não seria absurdo prever que alguns dos militantes mais ousados, dedicados e abnegados do futuro movimento comunista na América virão justamente de trabalhadores que passaram pela escola do trumpismo e tiraram as conclusões corretas dessa experiência. Há muitos precedentes para tais desenvolvimentos no passado, como já vimos.Por fim, quero deixar algo claro. O que apresentei a vocês aqui não é uma perspectiva elaborada, muito menos uma previsão detalhada do futuro. Para isso, seria necessário não o método marxista, mas uma bola de cristal — que, infelizmente, ainda não foi inventada.Com base nos fatos observáveis à minha disposição, apresentei um prognóstico muito provisório que, no entanto, não pode ser mais do que um palpite educado. A situação atual é uma equação extremamente complicada, com muitas soluções possíveis. Somente o tempo preencherá as lacunas e nos dará as respostas. A história nos apresentará muitas surpresas. Nem todas ruins.TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.Notas: O Russiagate envolve uma série de acusações de ingerência da Rússia na política doméstica dos Estados Unidos, especificamente no processo de escolha do chefe máximo deste país, nas eleições presidenciais de 2016, quando Trump foi eleito para o seu primeiro mandato. ↩︎ Nota do Editor: o partido radical era um partido liberal no poder na França na década de 1930. ↩︎