O mundo de cabeça para baixo – um sistema em crise Share TweetPublicamos a seguir o texto de Perspectivas Mundiais aprovado pelo Congresso da Internacional Comunista Revolucionária em agosto de 2025.Eventos importantes estão transformando o mundo como o conhecemos. Com Trump causando turbulência política e econômica em escala global, as contradições reprimidas ao longo de quase duas décadas de crise e estagnação capitalistas estão atingindo seu ápice. Do genocídio em Gaza à derrota do Ocidente na Ucrânia, e do aumento de tarifas ao crescimento da dívida mundial, acontecimentos de grande magnitude estão abalando a consciência de bilhões de pessoas.Para avaliar essa situação, a Internacional Comunista Revolucionária (ICR) convocará seu primeiro Congresso Mundial na Itália, daqui a apenas oito semanas. Nesse encontro, delegados e visitantes participarão de discussões aprofundadas sobre este rascunho do nosso documento de Perspectivas Mundiais, aprovado pelo Comitê Executivo Internacional. Para navegar pelas reviravoltas da situação mundial, uma compreensão clara do período atual é essencial — sem ela, uma organização revolucionária é como um navio sem bússola.Nos últimos dois anos, a ICR cresceu exponencialmente. Atualmente, estamos presentes em 70 países ao redor do mundo. O Congresso Mundial representará um passo crucial na preparação da nossa Internacional para os choques titânicos, as lutas de classes e as convulsões revolucionárias que se aproximam.Vivemos um período de reviravoltas e mudanças repentinas na situação global. A eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e suas políticas introduziram enorme instabilidade na política internacional, na economia global e nas relações entre as potências.Trump não foi a causa dessa turbulência, que resulta da crise do capitalismo, mas suas ações aceleraram enormemente o processo. Contradições que se acumulavam sob a superfície há muito tempo vieram subitamente à tona, abalando todo o cenário. A chamada ordem mundial liberal, que vigorou por décadas, está agora ruindo diante de nossos olhos.Ao analisarmos a situação mundial, devemos começar pelo essencial: o capitalismo é um sistema que há muito ultrapassou seu prazo de validade histórica. Em sua época de decadência, ele gera guerras, crises e destruição ambiental, ameaçando, a longo prazo, a própria existência da vida no planeta. O objetivo deste documento é delinear as principais características dessa crise e enfatizar a necessidade de construir uma organização revolucionária capaz de derrubá-la — a única forma de garantir um futuro para a humanidade.Em última instância, a incapacidade do sistema capitalista de desenvolver as forças produtivas é a causa fundamental da crise. A economia encontra-se estagnada, limitada pelos marcos do Estado-nação e pela propriedade privada dos meios de produção. Durante décadas, os capitalistas recorreram a diversos métodos para tentar superar essas barreiras: aumento da liquidez, expansão do comércio mundial etc. No entanto, todas essas medidas estão agora se convertendo em seu oposto.A eleição de TrumpA eleição de Donald Trump, em novembro de 2024, representou uma mudança política significativa e expressa a crise de legitimidade da democracia burguesa — um fenômeno que não se restringe aos EUA, mas está presente em todos os países. Apesar dos extensos esforços da principal fração da classe dominante e do establishment americano para impedir sua vitória, Trump conquistou uma vitória decisiva.Esse resultado tem sido amplamente interpretado, especialmente por comentaristas liberais, pela grande mídia e por setores da “esquerda”, como evidência de uma guinada mais ampla à direita na política estadunidense e global.Tais “explicações” são superficiais e enganosas. Além disso, induzem a conclusões extremamente perigosas — por exemplo, a ideia de que Joe Biden e os Democratas representariam, de alguma forma, uma alternativa mais progressista e “democrática”, uma afirmação completamente contraditória aos fatos.O governo Biden foi profundamente reacionário, algo particularmente evidente no campo da política externa. Recordemos que o “Genocide Joe” deu a Netanyahu um cheque em branco para prosseguir com o massacre de palestinos em Gaza. Ele liderou uma campanha feroz de repressão contra estudantes e outros que ousaram se opor a essa política reacionária.Da mesma forma, no caso da Ucrânia, ele foi diretamente responsável por provocar deliberadamente um conflito que resultou em um massacre sangrento, entregando bilhões de dólares — em dinheiro e ajuda militar — ao regime reacionário de Kiev e se engajando em uma política perigosa de provocações contra a Rússia.Durante a campanha eleitoral, Trump se apresentou como o “candidato da paz”, em oposição às políticas belicistas da camarilha de Biden. Essa diferença exerceu influência especial entre os eleitores de distritos com populações muçulmanas e árabes significativas.Embora seja verdade que uma camada de elementos reacionários tenha contribuído para o apoio a Trump, esses fatores, por si sós, não explicam a dimensão de seu êxito — nem o fato de ele ter ampliado sua fatia de votos em quase todos os grupos demográficos, notadamente entre as comunidades negras e latinas da classe trabalhadora. De fato, em diversos estados onde Trump obteve bons resultados ou melhorou seu desempenho, os eleitores, ao mesmo tempo, apoiaram iniciativas progressistas nas urnas, como medidas para proteger o direito ao aborto ou para aumentar o salário mínimo.O fator decisivo por trás da vitória de Trump reside em sua capacidade de explorar, articular e mobilizar um sentimento antissistema generalizado e profundamente enraizado na sociedade americana.Um exemplo marcante desse fenômeno pode ser observado na resposta pública ao suposto assassinato do CEO da United Healthcare por Luigi Mangione. Embora o ato em si tenha sido chocante, a reação popular — marcada por simpatia ao suposto agressor, e não à vítima — foi ainda mais reveladora. Mangione passou a ser visto por muitos como uma espécie de herói popular. Notavelmente, essa resposta não se limitou à esquerda política, mas também foi compartilhada por uma parcela do eleitorado conservador e republicano, incluindo apoiadores de Trump.Essa situação apresenta um paradoxo: Trump, apesar de ser um bilionário cercado por outros bilionários, conseguiu posicionar-se com êxito como a voz da ira antissistema. Essa contradição evidencia a natureza incoerente e distorcida do clima político atual. No entanto, ela reflete um descontentamento genuíno e generalizado com as instituições tradicionais — as grandes corporações, as elites políticas e o aparato estatal como um todo.A causa fundamental dessa raiva antissistema está na crise do capitalismo, que atingiu proporções gigantescas desde a crise de 2008, da qual o sistema ainda não se recuperou plenamente. Não estamos passando apenas por mais uma crise cíclica do capitalismo, mas por uma crise orgânica do capitalismo. O apoio à democracia burguesa nos países capitalistas avançados foi construído, ao longo de décadas, sobre a ideia de que o capitalismo seria capaz de satisfazer algumas das necessidades básicas da classe trabalhadora (como saúde, educação, aposentadoria etc.) e de que o padrão de vida de cada geração melhoraria, ainda que modestamente, em relação ao da geração anterior.Isso já não é mais verdade. Nos Estados Unidos, em 1970, mais de 90% das pessoas com 30 anos tinham rendimentos superiores aos de seus pais na mesma idade. Em 2010, essa proporção caiu para 50%. Em 2017, apenas 37% dos americanos acreditavam que seus filhos alcançariam um padrão de vida melhor do que o deles.Segundo o Bureau of Labor Statistics, desde o início da década de 1980, os salários reais da classe trabalhadora americana permaneceram estagnados ou caíram — em grande parte devido à terceirização de empregos para outros países. De forma semelhante, o Economic Policy Institute relata que os salários das famílias de baixa e média renda apresentaram pouco ou nenhum crescimento desde o fim da década de 1970, enquanto o custo de vida continuava a aumentar.Ao mesmo tempo, há uma polarização obscena da riqueza. De um lado, um pequeno grupo de bilionários acumula fortunas cada vez maiores. De outro, um número crescente de trabalhadores enfrenta dificuldades cada vez maiores para sobreviver: lidam com cortes brutais de austeridade, a corrosão do poder de compra dos salários pela inflação, o aumento das contas de energia, a crise habitacional, entre outros problemas.A mídia, os políticos, os partidos tradicionais, os parlamentos e o judiciário são corretamente percebidos como representantes dos interesses de uma pequena elite privilegiada, que toma decisões em benefício próprio, ignorando as necessidades da maioria.A crise de 2008 foi seguida por brutais cortes de austeridade em todos os países. Todas as conquistas do passado foram atacadas. As massas sofreram um rebaixamento em seu padrão de vida, enquanto os bancos foram socorridos. Isso deu origem a uma imensa onda de indignação, a movimentos de protesto em massa e, acima de tudo, a uma crise de legitimidade sem precedentes de todas as instituições burguesas.Num primeiro momento, esse sentimento — exemplificado pelos movimentos de massa anti-austeridade em torno de 2011 — encontrou expressão na esquerda. Houve uma ascensão de figuras e partidos de esquerda e anti-establishment por toda a Europa e os Estados Unidos: Podemos, Syriza, Jeremy Corbyn, Bernie Sanders, entre outros. No entanto, cada um desses movimentos acabou por trair as expectativas que haviam sido geradas. Os limites da política reformista de seus líderes ficaram expostos.Foi o fracasso abjeto dessas figuras da esquerda que abriu caminho para a ascensão de demagogos reacionários como Trump.Os mesmos processos estão em curso na maioria dos países capitalistas avançados: a crise do capitalismo, os ataques à classe trabalhadora, o colapso da esquerda e a ascensão de demagogos de direita, que surfam na onda de um sentimento anti-establishment.Perigo de fascismo ou bonapartismo?Mesmo antes da eleição de Trump, houve uma ruidosa campanha da mídia burguesa e de setores da esquerda para denunciá-lo como fascista.O marxismo é uma ciência. E, como toda ciência, possui uma terminologia rigorosa. Palavras como “fascismo” têm, para nós, significados precisos. Não são meros insultos ou rótulos que podem ser convenientemente aplicados a qualquer indivíduo de quem discordemos.Comecemos, então, por uma definição precisa de fascismo. No sentido marxista, o fascismo é um movimento contrarrevolucionário — um movimento de massas composto principalmente pelo lumpemproletariado e por uma pequena burguesia enfurecida. Ele é utilizado como aríete para esmagar e atomizar a classe trabalhadora, estabelecendo um Estado totalitário no qual a burguesia transfere o poder estatal a uma burocracia fascista.A principal característica do Estado fascista é a extrema centralização do poder e a autoridade absoluta do Estado, no qual os bancos e grandes monopólios são protegidos, mas submetidos a um controle central rígido exercido por uma burocracia fascista poderosa. Em O que é o Nacional-Socialismo?, Trotsky explica:“O fascismo alemão, assim como o fascismo italiano, ascendeu ao poder às custas da pequena burguesia, a qual transformou em um aríete contra as organizações da classe trabalhadora e as instituições da democracia. Mas o fascismo no poder é, ainda menos, o domínio da pequena burguesia. Pelo contrário, é a ditadura mais implacável do capital monopolista.”Essas são, em termos gerais, as principais características do fascismo. Como isso se compara à ideologia e ao conteúdo do fenômeno Trump? Já tivemos a experiência de um governo Trump que — segundo os terríveis alertas dos Democratas e de todo o establishment liberal — supostamente aboliria a democracia. Mas ele não fez nada disso.Nenhuma medida significativa foi tomada para restringir o direito de greve ou de manifestação, muito menos para abolir os sindicatos livres. As eleições ocorreram normalmente e, ao final, ainda que em meio a grande agitação, Trump foi sucedido por Joe Biden. Pode-se dizer o que quiser sobre o primeiro governo Trump, mas ele não apresentou nenhuma característica concreta de um regime fascista.Além disso, a correlação de forças entre as classes mudou significativamente desde a década de 1930. Nos países capitalistas avançados, o campesinato — que representava uma grande parcela da população — foi reduzido a um número muito pequeno. Profissões que antes eram consideradas de “classe média”, como funcionários públicos, médicos e professores, passaram por um processo de proletarização, com esses setores filiando-se a sindicatos e participando de greves. O peso social da classe trabalhadora foi enormemente fortalecido pelo desenvolvimento das forças produtivas durante a ampla recuperação econômica que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial.A ideologia do trumpismo — na medida em que se pode falar de uma — está muito distante do fascismo. Longe de desejar um Estado forte, o ideal de Donald Trump é o do capitalismo de livre mercado, no qual o Estado desempenha pouco ou nenhum papel (excetuando-se as tarifas protecionistas).Alguns levantaram a hipótese de que Trump representaria um regime bonapartista. A ideia, aqui novamente, é retratar Trump como um ditador determinado a esmagar a classe trabalhadora. Mas esse tipo de rotulagem nada explica. Na realidade, longe de tentar esmagar a classe trabalhadora, Trump apela a ela de forma demagógica, buscando apaziguá-la. É claro que, como político burguês, ele representa interesses fundamentalmente opostos aos da classe trabalhadora — mas isso, por si só, não o torna um ditador.É possível apontar este ou aquele traço na situação atual que possa ser interpretado como um elemento de bonapartismo. Talvez. Mas observações semelhantes poderiam ser feitas a respeito de praticamente qualquer regime democrático burguês recente.A mera presença de certos elementos de um fenômeno não equivale à manifestação efetiva desse fenômeno como tal. Pode-se, sim, afirmar que existem traços bonapartistas no trumpismo — mas isso não é o mesmo que afirmar que os Estados Unidos vivenciam um regime bonapartista.O problema é que o termo “bonapartismo” é extremamente elástico. Ele abrange uma ampla gama de situações, a começar pelo conceito clássico de bonapartismo, entendido como o governo da espada. Não é útil analisar o atual governo Trump em Washington dessa maneira, já que, apesar de suas muitas peculiaridades, ele ainda opera dentro dos marcos da democracia burguesa. Nossa tarefa não é aplicar rótulos, mas acompanhar o processo em sua dinâmica real e compreender seus aspectos essenciais.Mudanças tectônicas nas relações mundiaisA política externa de Trump representa uma grande ruptura nas relações internacionais e o fim da ordem mundial liberal que existiu por 80 anos após a Segunda Guerra Mundial. Trata-se do reconhecimento do declínio relativo do imperialismo americano e da ascensão de potências imperialistas rivais — especialmente a China, principal concorrente dos EUA no cenário global, além da Rússia.Ao final da Segunda Guerra Mundial, os EUA emergiram enormemente fortalecidos. Com a Europa e o Japão arrasados pela guerra, os Estados Unidos respondiam por 50% do PIB mundial e 60% da produção industrial do planeta. Seu único rival sério no cenário internacional era a União Soviética, que saiu da guerra fortalecida após derrotar a Alemanha nazista e avançar pelo continente.A revolução chinesa fortaleceu ainda mais o bloco stalinista. Os EUA trabalharam para reconstruir a Europa Ocidental e o Japão em um esforço para conter o “avanço do comunismo”. A burocracia soviética, por sua vez, não estava interessada na revolução mundial e mostrou-se disposta a firmar um modus vivendi com Washington, expresso na política de “coexistência pacífica”.Seguiu-se um período de relativo equilíbrio entre os EUA e a URSS — duas potências nucleares — conhecido como Guerra Fria. Sob a liderança americana, uma série de instituições formalmente multilaterais foram criadas para gerir as relações internacionais (como as Nações Unidas) e a economia global (como o FMI e o Banco Mundial, instituídos na Conferência de Bretton Woods). Esse equilíbrio foi reforçado pela recuperação econômica do pós-guerra — um período de extraordinário desenvolvimento das forças produtivas e de expansão do mercado mundial.Esse período perdurou até o colapso do stalinismo entre 1989 e 1991 e a subsequente restauração do capitalismo na Rússia e na China. Isso gerou uma nova grande reviravolta na situação mundial. Os Estados Unidos tornaram-se a potência imperialista dominante, sem qualquer adversário à altura.A guerra imperialista de 1991 contra o Iraque foi conduzida sob os auspícios da ONU, com o voto favorável da Rússia e a abstenção da China. Parecia não haver resistência significativa à dominação do imperialismo estadunidense. No plano econômico, Washington impulsionou a globalização e o “neoliberalismo” — isto é, a maior integração dos mercados mundiais sob o domínio do imperialismo estadunidense e a retração do papel do Estado.Esse período de dominação irrestrita do imperialismo americano foi sendo lentamente corroído ao longo dos últimos 35 anos, até que uma situação completamente nova emergiu.Impulsionados por sua suprema arrogância, os Estados Unidos lançaram as invasões do Iraque e do Afeganistão. Mas, nesse ponto, a história começou a se inverter. Os norte-americanos ficaram atolados nessas guerras impossíveis de vencer por 15 anos, a um custo elevado em termos de recursos financeiros e vidas humanas. Em agosto de 2021, foram forçados a uma retirada humilhante do Afeganistão.Essas experiências deixaram o público norte-americano sem qualquer apetite por novas aventuras militares externas e tornaram a classe dominante dos EUA extremamente cautelosa quanto ao envio de tropas terrestres para o exterior. Paralelamente, a ascensão de novas potências regionais e globais alterou o equilíbrio relativo de forças no mundo. O imperialismo americano, no entanto, nada aprendeu com essas derrotas. Recusou-se a reconhecer o novo equilíbrio e, em vez disso, tentou manter seu domínio por meio de uma série de conflitos que não conseguiu vencer.Um mundo multipolar?A situação mundial está dominada por uma enorme instabilidade nas relações mundiais. Isso é resultado da luta pela hegemonia mundial entre os EUA, a potência imperialista mais poderosa do mundo, que está em relativo declínio, e a China, uma potência imperialista em ascensão, mais jovem e mais dinâmica. Estamos testemunhando uma tremenda mudança, comparável em escala ao movimento das placas tectônicas na crosta terrestre. Tais movimentos são acompanhados por explosões de todos os tipos. A guerra na Ucrânia – onde uma derrota humilhante para os EUA e a OTAN está sendo preparada – e o conflito no Oriente Médio são expressões desse fato.A abordagem de Trump às relações mundiais representa uma tentativa de reconhecimento de que os EUA não podem mais ser a única polícia do mundo. Na visão dele e de seus colaboradores mais próximos, a tentativa dos EUA de manter a hegemonia e a dominação total é extremamente custosa, impraticável e prejudicial aos seus principais interesses de segurança nacional.Isso não significa que os EUA deixaram de ser uma potência imperialista ou que as políticas de Trump sejam do interesse dos povos oprimidos do mundo. Nada poderia estar mais longe da verdade. A política externa de Trump representa uma delimitação nítida do que é e do que não é dos interesses essenciais de segurança nacional dos EUA, começando pela América do Norte.Quando Trump afirma que os Estados Unidos necessitam ter o controle sobre o Canal do Panamá e a Groenlândia, ele está expressando as necessidades do imperialismo americano. O Canal do Panamá é uma rota comercial crucial, ligando o Pacífico ao Golfo do México e transportando 40% do tráfego de contêineres dos EUA.Quanto à Groenlândia, ela sempre teve uma importante localização geoestratégica, razão pela qual os EUA mantêm uma presença militar na ilha. O aquecimento global levou ao aumento do tráfego marítimo entre o Pacífico e o Atlântico através do Ártico. A redução do gelo polar significa acesso mais fácil aos fundos marinhos, onde existem enormes reservas de minerais de terras raras. A própria ilha também possui importantes depósitos de minerais essenciais (terras raras, urânio), bem como gás e petróleo, que agora estão se tornando mais acessíveis, também como resultado do aquecimento global. Nesse contexto, os EUA competem com a China e a Rússia pelo controle dessas rotas comerciais e recursos.A política externa de Trump baseia-se no reconhecimento das limitações do poder dos EUA. A consequência disso é uma tentativa de desvincular os Estados Unidos de uma série de conflitos custosos (Ucrânia, Oriente Médio) por meio de acordos, a fim de reconstruir seu poder e se concentrar em seu principal rival no cenário mundial, a China.Durante todo o período transcorrido desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ou talvez até antes disso, o imperialismo norte-americano manteve a pretensão de agir em prol dos direitos humanos, disseminando a democracia e a “ordem baseada em regras”, defendendo “o princípio sagrado da inviolabilidade das fronteiras nacionais”, e assim por diante.Eles agiam por meio de instituições internacionais “multilaterais”, aparentemente neutras, nas quais todos os países tinham voz: as Nações Unidas, a OMC, o FMI e assim por diante. Na realidade, isso era apenas uma fachada. Sempre foi uma farsa. Ou os interesses do imperialismo norte-americano eram satisfeitos por meio dessas instituições, ou ele as ignorava completamente. A diferença agora é que Trump não se importa nem um pouco com nenhuma dessas pretensões. Ele parece determinado a rasgar todo o livro de regras e a expressar as coisas mais abertamente, como elas realmente são.Alguns argumentaram que, diante do poder desenfreado dos EUA, a ideia de um mundo multipolar era algo progressista, que permitiria aos países oprimidos um maior grau de soberania, um ideal pelo qual deveríamos lutar. Agora podemos ter um vislumbre de como seria um mundo “multipolar”: potências imperialistas dividindo o mundo em esferas de influência, intimidando os países a se submeterem a uma ou outra.O declínio relativo do imperialismo americanoDevemos enfatizar que, quando falamos do declínio do imperialismo americano, nos referimos a um declínio relativo. Ou seja, um declínio em comparação à sua posição anterior em relação a outras potências concorrentes. Os Estados Unidos continuam sendo, em todos os aspectos, a força mais poderosa e reacionária do mundo.Em 1985, os EUA representavam 36% do PIB mundial. Atualmente, essa participação caiu para 26% (2024). No mesmo período, a China cresceu de 2,5% do PIB mundial para 18,5%. O Japão, que atingiu o pico de 18% em 1995, agora despencou para apenas 5,2%.Os EUA ainda dominam a economia mundial por meio do controle dos mercados financeiros. Um enorme 58% das reservas cambiais mundiais é mantido em dólares americanos (enquanto apenas 2% são mantidos em Renminbi chinês), embora esse número seja inferior aos 73% de 2001. O dólar também representa 58% do faturamento das exportações mundiais. Em termos de saída líquida de Investimento Estrangeiro Direto (um indicador da exportação de capital), os EUA lideram o mundo, com US$ 454 trilhões, enquanto a China (incluindo Hong Kong) vem em segundo lugar, com US$ 287 trilhões.É a influência econômica de um país que lhe confere poder internacional, mas isso precisa ser respaldado pelo poderio militar. Os gastos militares dos EUA representam 40% do total mundial, com a China em segundo lugar, com 12%, e a Rússia em terceiro, com 4,5%. Os EUA gastam mais do que os 10 países seguintes combinados.No entanto, os EUA não podem mais reivindicar o domínio absoluto do mundo. O colossal poder econômico da China e seus consequentes avanços em força militar, juntamente com a superioridade militar demonstrada pela Rússia nos campos de batalha da Ucrânia, representam um desafio formidável. Assim, por todos os lados, as limitações do poder global dos Estados Unidos estão sendo cruelmente expostas.Esse declínio relativo encontra sua expressão econômica na fuga parcial de capitais do dólar, dos títulos do Tesouro americano e das ações americanas. Com os monopólios americanos enfrentando maior concorrência de rivais internacionais, particularmente da China, as ações americanas não são mais consideradas a aposta segura pelos investidores como era antes. Da mesma forma, à medida que a montanha da dívida federal dos EUA cresce e o governo americano recorre a um maior financiamento do déficit, os títulos do Tesouro americano (títulos da dívida pública) não são mais considerados o porto seguro financeiro que já foram. Isso levou ao enfraquecimento do dólar – apesar das tarifas americanas – e do seu domínio na arena das finanças globais.Isso representa uma “correção de mercado”, aproximando o preço da moeda, dos ativos e dos títulos americanos da real posição econômica debilitada do capitalismo americano. No entanto, assim como acontece com o poder militar dos EUA e o antigo papel dos Estados Unidos como polícia mundial, não há alternativa viável ao dólar no que diz respeito ao comércio e às finanças mundiais. Daí o crescente alarme entre os estrategistas burgueses sobre o impacto caótico no sistema financeiro global e na economia mundial caso a confiança no dólar entre em colapso.Esta é mais uma forma pela qual o declínio relativo do capitalismo americano e a emergente “multipolaridade” contribuirão para uma maior incerteza e instabilidade em escala mundial. Um a um, todos os pilares da ordem do pós-guerra estão sendo corroídos e minados, com consequências explosivas – tanto econômicas quanto militares e políticas.A influência militar da RússiaEmbora a Rússia não seja um colosso econômico comparável à China, estabeleceu uma sólida base econômica e tecnológica. Isso lhe permitiu resistir com êxito à agressão econômica sem precedentes que o Ocidente lhe impôs sob a bandeira das “sanções”. Além disso, fez isso enquanto travava uma guerra que derrotou todos os sistemas de armas lançados contra ela pelo imperialismo ocidental. Construiu um exército poderoso que se equipara às forças combinadas dos Estados europeus; construiu uma formidável indústria de defesa que supera os Estados Unidos e a Europa em tanques, artilharia, munições, mísseis e drones; e possui o maior arsenal nuclear do mundo, herdado da URSS.Após o colapso da União Soviética e a pilhagem generalizada da economia planificada, a classe dominante russa brincou com a ideia de ser aceita na mesa de negociações mundial em igualdade de condições. Chegou a cogitar a ideia de ingressar na OTAN. A ideia foi rejeitada. Os EUA queriam exercer domínio total e irrestrito sobre o mundo e não viam necessidade de compartilhar o poder com uma Rússia fraca e em crise.A humilhação da Rússia foi revelada de forma crua, primeiro quando a Alemanha e os EUA arquitetaram a fragmentação reacionária da Iugoslávia na esfera de influência tradicional da Rússia, e depois com o bombardeio da Sérvia em 1999. Yeltsin, um bêbado bufão e marionete do imperialismo americano, foi um dos representantes dessa relação de subordinação.No entanto, à medida que a Rússia se recuperava gradualmente da crise econômica, os círculos dirigentes não estavam mais dispostos a aceitar sua humilhação na arena internacional. Foi isso que motivou a ascensão de Putin, o astuto bonapartista, que manipulou seu caminho até o poder por meio de todos os tipos de manobras.Eles começaram a resistir ao avanço da OTAN para o leste, um movimento que quebrou todas as promessas feitas aos russos em 1990, quando lhes foi prometido que não haveria expansão da OTAN para o leste, em troca da aceitação de uma Alemanha unificada dentro da aliança.Em 2008, a Rússia travou uma guerra curta e eficaz na Geórgia, destruindo o exército do país, que havia sido treinado e equipado pela OTAN. Esse foi o primeiro sinal de alerta da Rússia, sinalizando que não aceitaria mais as invasões do Ocidente. Síria e Ucrânia foram os próximos. Em cada um desses países, a força da Rússia em relação ao imperialismo americano foi posta à prova. O declínio relativo do imperialismo dos EUA, entretanto, foi ainda mais revelado em sua retirada humilhante do Afeganistão em agosto de 2021.A invasão russa da Ucrânia foi a conclusão lógica da recusa do Ocidente em aceitar as preocupações da Rússia com a segurança nacional, expressas na exigência de neutralidade para a Ucrânia e na interrupção da expansão da OTAN para o leste. Quando Donald Trump afirma que esta guerra era desnecessária e que, se ele fosse presidente, ela nunca teria ocorrido, isso provavelmente é verdade. O imperialismo americano e seus aliados europeus estavam bem cientes de que a adesão da Ucrânia à OTAN era uma linha vermelha do ponto de vista dos interesses de segurança nacional da Rússia. Apesar disso, decidiram convidar os ucranianos a se candidatarem à adesão à OTAN em 2008. Esta foi uma provocação flagrante, que logicamente levaria às consequências mais graves. Foi este passo fatal que eventualmente levou à guerra.O Ocidente insistiu no “direito da Ucrânia de aderir à OTAN” – quando seu status neutro, a proibição de bases militares estrangeiras e a não participação em blocos militares eram algo que havia sido acordado e até mesmo incluído na declaração de independência da Ucrânia. O chefe da CIA, William J. Burns, havia repetidamente alertado contra isso. Mas a camarilha de belicistas que comandava a política externa do governo Biden — e o próprio Joe Biden — tinha outras ideias.Biden pensou que poderia usar a Ucrânia como bucha de canhão em uma campanha para enfraquecer a Rússia e prejudicar seu papel no mundo. Não podia permitir que um país como a Rússia, rival do imperialismo americano, pudesse ameaçar a hegemonia global dos EUA. Mas a interferência dos EUA na Ucrânia tem outro alvo, embora menos aparente: a Alemanha e a UE. Romper o vínculo entre a UE e a Rússia significa enfraquecer a base do capitalismo alemão. Isso explica por que, no início, especialmente a Alemanha, estava muito menos ansiosa pela guerra, mas, sendo fraca demais para assumir uma “terceira posição”, inevitavelmente teve que seguir o imperialismo americano quando a guerra eclodiu.Em março de 2022, Biden, inflado por sua própria arrogância, chegou a levantar a ideia de uma mudança de regime em Moscou! Juntamente com os europeus, ele estava convencido de que sanções econômicas e exaustão militar levariam a Rússia à beira do colapso. Eles subestimaram seriamente a extensão do poder econômico e militar da Rússia. Como resultado, o imperialismo americano se viu envolvido em uma guerra impossível de ganhar, que representou um dreno colossal de seus recursos financeiros e militares.Trump agora insiste que esse desastre não foi obra dele. Ele diz: “Esta não é a minha guerra. É a guerra de Joe Biden.” E isso está correto. Os estrategistas do capital são perfeitamente capazes de cometer erros de cálculo. E este é um exemplo claro. Quando Trump afirma que a guerra na Ucrânia não representa os “interesses essenciais” dos Estados Unidos, ele está absolutamente correto. Os Estados Unidos enfrentam ameaças muito maiores na Ásia e no Pacífico: a ascensão da China, além de outros problemas no Oriente Médio e uma crescente crise econômica. Isso explica sua pressa em tentar libertar o imperialismo americano do pântano traiçoeiro da Ucrânia. Mas os problemas criados por Biden e seus capangas europeus estão se mostrando difíceis de resolver.Os homens e mulheres que comandam o espetáculo em Washington e Londres sabotaram sistematicamente todas as tentativas de se alcançar uma solução pacífica antes mesmo do início da guerra. Em abril de 2022, as negociações na Turquia entre a Ucrânia e a Rússia estavam bastante avançadas e poderiam ter levado ao fim da guerra, com base na aceitação de uma série de exigências russas. O imperialismo norte-americano, apoiado por seu cãozinho de estimação britânico, Boris Johnson, sabotou as negociações, pressionando Zelensky a não assinar a promessa de apoio ilimitado que levaria à vitória total da Ucrânia. Hoje, são os europeus, liderados pela Alemanha, França e, novamente, o Reino Unido, que pressionam Trump a continuar apoiando a Ucrânia e estão eles próprios alimentando as chamas da guerra. Seus cálculos são bastante cínicos: eles querem atar os EUA e impedir uma retirada militar da Europa. Ao mesmo tempo, com o sangue de dezenas de milhares de vidas ucranianas e russas, eles querem ganhar tempo – para que seu próprio rearmamento surta efeito.No início da guerra, o governo Biden acreditava ser capaz de transformar a Rússia em um pária no cenário mundial e a Putin em persona non grata. Em vez disso, a guerra aprofundou as tensões existentes nas relações mundiais e, por sua vez, expôs a mentira de uma “comunidade internacional” todo-poderosa, aliada ao imperialismo americano.Além da UE, do Japão, da Grã-Bretanha e do Canadá, os EUA tiveram dificuldades para persuadir a vasta maioria das classes dominantes do mundo a apoiar sua guerra por procuração com a Rússia. Isso foi uma confirmação impressionante de que os EUA são hoje incapazes de exercer sua influência política como o faziam há trinta anos. Como Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, alertou sobre o isolamento ainda maior do Ocidente: “Há uma aceitação crescente da fragmentação e – talvez ainda mais preocupante – acho que há uma sensação crescente de que o nosso pode não ser o melhor fragmento para se associar.”Hoje, os EUA enfrentam uma derrota humilhante na Ucrânia. As sanções não surtiram o efeito desejado. Em vez de sofrer um colapso econômico, a Rússia tem desfrutado de taxas de crescimento econômico constantes, muito superiores às do Ocidente. Longe de se isolar, agora estabeleceu laços econômicos mais estreitos com a China e vários países-chave que deveriam estar na esfera de influência dos EUA. Países como Índia, Arábia Saudita, Turquia e outros a ajudaram a contornar as sanções.China e Rússia tornaram-se aliadas muito mais próximas, unidas por sua oposição à dominação mundial pelos EUA, e reuniram em torno delas uma série de outros países. Quando a derrota dos EUA na Ucrânia for finalmente concretizada, terá consequências enormes e duradouras para as relações mundiais, enfraquecendo ainda mais o poder do imperialismo americano em todo o mundo.A derrota dos EUA e da OTAN na Ucrânia enviará uma mensagem poderosa. A maior potência imperialista do mundo nem sempre consegue impor sua vontade. Além disso, a Rússia emergiu dela com um grande exército, testado nos métodos e técnicas mais recentes da guerra moderna, e com um poderoso complexo militar-industrial.A política de Trump representa uma mudança brusca em relação à política anterior do imperialismo americano. Ele reconheceu que esta guerra contra a Rússia não pode ser ganha e, portanto, está tentando tirar os EUA dela. Há também o cálculo de que, ao se chegar a um acordo com a Rússia, que reconheça seus interesses de segurança nacional (ou seja, os do imperialismo russo), pode afastá-la de sua estreita aliança com a China, o principal rival do imperialismo americano no cenário mundial. No entanto, é improvável que esses cálculos funcionem, visto que, durante os três anos de guerra, o Ocidente empurrou a Rússia para perto demais da China para que eles pudessem desfazer esse processo facilmente. Declarações e ações recentes dos governos russo e chinês indicam que ambos os lados consideram sua reaproximação como estratégica.A ascensão da China como potência imperialistaA rápida transformação da China, de um país economicamente atrasado a um poderoso país capitalista, tem poucos paralelos na história moderna. Em um espaço de tempo incrivelmente curto, ela ascendeu a uma posição capaz de desafiar o poder do poderoso imperialismo americano.A China de hoje não tem absolutamente nada em comum com a nação fraca que era em 1938: semifeudal e semicolonial, e dominada por um regime imperialista. De fato, atualmente, a China não é apenas um país capitalista, mas também um país que possui todas as características de uma potência imperialista por direito próprio.É impossível explicar essa transformação sem compreender o papel crucial desempenhado pela Revolução Chinesa de 1949, que aboliu o latifúndio e o capitalismo e criou as bases para uma economia nacionalizada e planejada, condição prévia para a transformação da China de uma nação atrasada e semicolonial a sua posição atual como um gigante econômico.Como uma nação que chegou tardiamente ao cenário internacional, teve que lutar para controlar as fontes de matérias-primas e energia para sua indústria, os campos de investimento para seu capital, as rotas comerciais para suas importações e exportações e os mercados para seus produtos. Em todos esses campos, obteve êxitos notáveis.A ascensão da China, ao longo de 30 anos, foi resultado de investimentos massivos em meios de produção e de sua dependência dos mercados mundiais. Inicialmente, aproveitou suas grandes reservas de mão de obra barata para exportar produtos como têxteis e brinquedos para o mercado mundial.Atualmente, é uma economia capitalista tecnologicamente avançada, que detém uma posição mundial dominante em uma série de mercados de alta tecnologia (veículos elétricos e baterias para veículos elétricos, células fotovoltaicas, ingredientes antibióticos, drones comerciais, infraestrutura de comunicações celulares 5G, usinas nucleares, etc.), não apenas em termos de volume de vendas, mas também em termos de inovação.A China também é líder mundial na área da robótica. Ela ocupa o terceiro lugar no mundo em densidade de robôs industriais, com 470 por 10.000 trabalhadores da indústria, embora sua força de trabalho na indústria seja superior a 37 milhões. Isso a coloca atrás apenas da Coreia do Sul (1.012) e Cingapura (770), e à frente da Alemanha (429) e do Japão (419), estando bem acima do nível dos EUA (295). Esses são números de 2023, e a classificação da China provavelmente melhorou desde então, já que em 2023 ela representava 51% de todas as novas instalações de robôs industriais no mundo.Em termos de exportação de capital, a China fica atrás apenas dos EUA. Em 2023, os EUA representaram 32,8% das saídas globais de Investimento Estrangeiro Direto, com China e Hong Kong representando, juntas, 20,1%. Em termos de estoque acumulado de IED, os EUA detinham 15,1% do total global, enquanto China e Hong Kong representavam 11,3%. Apesar do domínio americano nessa área, o plano estratégico de longo prazo para essas exportações de capital permitiu à China, nas últimas duas décadas, realizar um processo significativo de controle sobre as rotas comerciais marítimas e para a produção e o refino de minerais essenciais à grande maioria das tecnologias modernas. A China domina a extração global de terras raras (69%) e seu refino (92%). Também domina o refino de minerais críticos, como cobalto (80%), níquel (68%) e lítio (60%). Além disso, a China está avançando no controle da extração de grandes reservas, como no Congo (onde controla 15 das 19 melhores minas de cobalto do país) e na Argentina (43% de suas exportações de lítio foram para a China, em comparação aos 11% para os EUA). Isso tem sido essencial não apenas para dominar a produção dos importantes setores tecnológicos mencionados acima, mas também para estabelecer certos controles sobre a exportação desses minerais para os EUA, o que é uma importante moeda de troca nas negociações com Trump sobre tarifas.Como resultado da forma como o capitalismo foi restaurado na China, o Estado desempenha um papel importante na economia. Ele tem uma política consciente de fomentar e financiar o desenvolvimento tecnológico. O programa “Made in China 2025” tinha como objetivo dar um grande salto em indústrias-chave e tornar o país autossuficiente e independente do Ocidente. Os gastos da China em pesquisa e desenvolvimento aumentaram significativamente e estão quase no mesmo nível dos EUA.Esse êxito não foi alcançado sem criar crescentes contradições e conflitos com outras nações capitalistas, levando, eventualmente, à atual guerra comercial com os Estados Unidos.Após o colapso da União Soviética e a abertura de novos mercados sob a política de globalização, o crescimento da economia capitalista na China foi inicialmente visto por economistas e investidores ocidentais como uma oportunidade de ouro.Os investidores ocidentais se esforçaram ao máximo para instalar fábricas na China, onde poderiam explorar uma oferta aparentemente infinita de mão de obra barata. Entre 1997 e 2019, 36% do crescimento do estoque de capital global ocorreu na China. A penetração do capital americano na China foi tão grande que as duas economias pareciam estar indissoluvelmente ligadas.O crescimento da China desempenhou um papel crucial no desenvolvimento da economia mundial por várias décadas. Em 2008, a burguesia ocidental chegou a considerar que a China ajudasse a tirar a economia mundial da recessão. No entanto, como apontamos na época, isso representava um risco muito sério e ameaçador para eles.Essas fábricas, utilizando tecnologia moderna, inevitavelmente produziriam grandes quantidades de commodities baratas que precisariam ser exportadas, visto que a demanda por elas na própria China permanecia limitada. No final das contas, isso causou sérios problemas para os Estados Unidos e outras economias ocidentais.Tudo se transformou em seu oposto. Colocava-se cada vez mais a questão: quem está ajudando quem? É verdade que grandes lucros estavam sendo obtidos por investidores ocidentais, mas a China estava estabelecendo capacidades avançadas de fabricação, expertise tecnológica, infraestrutura e uma força de trabalho qualificada. Isso passou a ser cada vez mais visto como uma ameaça, especialmente nos Estados Unidos.A China se tornou um fornecedor insubstituível para fabricantes globais, seja produzindo produtos de consumo acabados, como iPhones, ou bens de capital e componentes essenciais. A China é o principal fornecedor de 36% das importações dos EUA, atendendo a mais de 70% da demanda americana por esses produtos.A China se tornou um rival sistêmico dos EUA no cenário mundial. Este é o verdadeiro significado da guerra comercial de Trump contra o país. Trata-se de uma luta entre duas potências imperialistas para afirmar sua força relativa no mercado mundial.Washington utilizou as medidas mais extremas para isso, proibindo a venda dos microchips mais avançados para a China, barrando a venda das máquinas de litografia mais avançadas e impedindo empresas como a Huawei de concorrer a contratos de infraestrutura 5G em vários países, etc.Mas as tentativas dos EUA de bloquear o desenvolvimento da China em tecnologia de ponta tiveram o efeito oposto. Em resposta, a China acelerou o esforço para alcançar a autossuficiência. Embora ainda enfrente gargalos, por exemplo, devido à falta de acesso às máquinas de litografia EUV mais avançadas, usadas para fabricar os microprocessadores mais avançados, a China usou sua engenhosidade para encontrar soluções alternativas parciais.É verdade que, apesar do seu progresso, existem muitas contradições na economia chinesa. A produtividade da mão de obra na China tem crescido devido ao desenvolvimento da ciência, indústria e tecnologia, enquanto na Europa ela está estagnada há muito tempo e nos EUA experimentou apenas um crescimento modesto nos últimos anos. No entanto, a produtividade da mão de obra chinesa em geral ainda está consideravelmente atrás da dos Estados Unidos. Levará tempo para que essa lacuna seja preenchida.Também é justo presumir que as taxas de crescimento sem precedentes que a China alcançou nas últimas décadas não serão mantidas. De fato, a desaceleração já começou. Na década de 1990, a China cresceu a um ritmo impressionante de 9% ao ano, com picos de 14%. Entre 2012 e 2019, cresceu entre 6% e 7%. Atualmente, está em torno de 5%. No entanto, a economia chinesa como um todo ainda cresce mais rápido do que a dos países capitalistas avançados do Ocidente.É claro que, pelo próprio fato de ter se tornado uma economia capitalista e fortemente integrada ao mercado mundial, a China deve, eventualmente, enfrentar todos os problemas que isso acarreta. Já existem disparidades regionais no desenvolvimento econômico, bem como uma enorme desigualdade de renda. O desemprego aumentou entre trabalhadores migrantes e jovens.Grandes pacotes de estímulo econômico e medidas keynesianas levaram a um aumento da dívida. A dívida pública em relação ao PIB, que era de apenas 23% em 2000, aumentou para 60,5% em 2024. Este é um aumento significativo, mas ainda continua sendo inferior ao da maioria das economias capitalistas avançadas. No entanto, a dívida total (estatal, corporativa e familiar) atingiu 300% do PIB.O aumento do protecionismo e a desaceleração do comércio mundial, sem dúvida, afetarão a China. A única maneira de superar esta crise será pressionar com mais força para descarregar sua superprodução no mercado mundial, o que, por sua vez, aumentará as tensões em escala global e, ao mesmo tempo, aprofundará a crise do sistema como um todo.Nesta luta titânica entre dois gigantes econômicos, a questão é colocada diretamente: quem prevalecerá? As colunas da imprensa ocidental estão repletas de avaliações negativas e alertas alarmantes sobre o futuro da economia chinesa.A imprensa ocidental busca constantemente apresentar um quadro bastante sombrio da economia chinesa – como invariavelmente faz em relação à economia russa, que, no entanto, ainda mantém uma taxa de crescimento saudável de cerca de 4% a 5% ao ano. Isso dificilmente sugere uma economia à beira do colapso.A China certamente não está imune a crises, mas também possui reservas consideráveis para enfrentar esse desafio e sair dela com muito menos danos do que frequentemente apregoado na imprensa ocidental. Acima de tudo, é necessário ter em mente que a China, embora seja um país capitalista, ainda possui muitas peculiaridades.É, de fato, uma economia que ainda mantém elementos consideráveis de controle, intervenção e planejamento estatal. Isso funciona muito a seu favor, quando comparado a países como os Estados Unidos.Existem também importantes fatores políticos, culturais e psicológicos que podem desempenhar um papel decisivo em qualquer conflito com potências imperialistas estrangeiras. O povo chinês guarda longas e amargas lembranças de sua passada subjugação, exploração e humilhação nas mãos do imperialismo.Por mais que desgoste de sua própria classe dominante, o ódio aos imperialistas estrangeiros é muito mais profundo e pode fornecer um poderoso apoio ao regime em sua luta contra os EUA.Os círculos dirigentes dos EUA têm assistido à ascensão da China com pânico crescente. Adotaram uma atitude beligerante, expressa, por um lado, pelos aumentos exorbitantes de tarifas de Trump e, por outro, pelas constantes provocações sobre Taiwan.Os belicistas em Washington acusam constantemente a China de planejar invadir o que os chineses consideram uma ilha rebelde, que lhes pertence por direito.Mas os círculos dirigentes da China são liderados por homens que há muito aprenderam a arte da paciência na diplomacia. Eles não precisam invadir Taiwan. Sabem que, mais cedo ou mais tarde, ela será reunificada com o continente. Esperaram décadas para retomar o controle de Hong Kong dos britânicos. E não veem razão para buscar uma solução militar precipitada para o problema.Somente um erro de cálculo grave por parte dos belicistas em Washington, ou uma decisão precipitada dos nacionalistas taiwaneses de proclamar a independência, os levaria a uma ação militar. Nessas circunstâncias, os homens em Pequim teriam todas as cartas na manga.Não há como Taiwan resistir por muito tempo ao poderio do exército e da marinha chineses, que estão estacionados a apenas alguns quilômetros de distância, enquanto os americanos teriam que deslocar uma grande força para enfrentar condições difíceis e perigosas através de um oceano inteiro.De qualquer forma, não há nada que indique que o próprio Donald Trump esteja buscando um conflito militar com a China. Ele prefere outros métodos – a imposição de sanções severas e tarifas elevadas – para forçar a China a se submeter. Mas a China não tem intenção de se submeter, seja em uma guerra econômica ou em um conflito militar real.Até recentemente, a China projetava seu poder principalmente por meios econômicos, mas também está construindo seu poderio militar. A China anunciou recentemente um aumento de 7,2% nos gastos com defesa. O país já possui um enorme e poderoso exército terrestre e agora está desenvolvendo uma marinha igualmente poderosa e moderna para defender seus interesses em alto-mar.Um artigo recente da BBC afirma que o país possui a maior marinha do mundo, superando a dos Estados Unidos. Também não é correto afirmar que suas Forças Armadas se baseiam em tecnologia e equipamentos antiquados. O mesmo artigo afirma que:“A China está agora totalmente comprometida com o desenvolvimento de uma guerra ‘inteligente’, ou seja, de métodos militares baseados em tecnologias disruptivas – especialmente inteligência artificial, de acordo com o Departamento de Defesa dos EUA.”E acrescenta:“A Academia de Ciências Militares da China recebeu o mandato de garantir que isso aconteça, por meio da ‘fusão civil-militar’, ou seja, unindo empresas de tecnologia do setor privado chinês com as indústrias de defesa do país. Há relatos que sugerem que a China já pode estar usando inteligência artificial em robótica militar e sistemas de orientação de mísseis, bem como em veículos aéreos não tripulados e embarcações navais não tripuladas.”Além disso, a China possui um dos programas espaciais mais ativos do mundo. Entre outras missões, possui planos ambiciosos para construir uma estação espacial na Lua e visitar Marte. Além do interesse científico intrínseco, esses planos estão claramente relacionados a um programa de rearmamento altamente ambicioso.O desenvolvimento das forças produtivas na China é agora um fato estabelecido. É inútil negá-lo. Tampouco, objetivamente falando, é um desenvolvimento negativo do ponto de vista da revolução mundial, pois criou uma classe trabalhadora massiva, que se acostumou a um aumento constante em seu padrão de vida por um período prolongado. Trata-se de uma classe trabalhadora jovem e vigorosa, livre de derrotas, sem estar atada a organizações reformistas.“A China é um dragão adormecido. Deixem a China dormir, pois quando acordar, ela abalará o mundo” é uma afirmação frequentemente atribuída a Napoleão. Quer ele tenha dito isso ou não, certamente se aplica ao poderoso proletariado chinês da atualidade. O momento da verdade pode ser adiado por algum tempo. Mas quando essa força poderosa começar a se mover, ela provocará uma explosão de proporções sísmicas.Equilíbrio entre as potênciasO declínio relativo do imperialismo americano e a ascensão da China criaram uma situação em que alguns países conseguem equilibrar-se um contra o outro e obter um pequeno grau de autonomia para perseguir seus próprios interesses, pelo menos em nível regional. Isso inclui países como Turquia, Arábia Saudita, Índia e outros, em diferentes graus.A ascensão do BRICS, formalmente lançado em 2009, representa uma tentativa da China e da Rússia de fortalecer sua posição no cenário mundial, proteger seus interesses econômicos e vincular uma série de países à sua esfera de influência.A imposição de sanções econômicas abrangentes pelo imperialismo norte-americano contra a Rússia acelerou esse processo. Ao desenvolver mecanismos para evitar e superar as sanções, a Rússia firmou uma série de alianças com outros países, incluindo Arábia Saudita, Índia, China e muitos outros.Em vez de demonstrar o poder dos EUA, o fracasso das sanções revelou os limites da capacidade do imperialismo norte-americano de impor sua vontade e levou diversos países a considerarem alternativas à dominação americana nas transações financeiras. A adesão ao BRICS expandiu-se com novos países sendo convidados ou se candidatando à adesão.Ao lidar com essa questão, é importante ter o senso das proporções. Por mais importantes que sejam essas mudanças, o BRICS está repleto de todo tipo de contradições. O Brasil, embora faça parte do BRICS, também faz parte do Mercosul, o bloco de livre comércio sul-americano, que está negociando um acordo de livre comércio com a UE.A Índia faz parte do bloco, mas reluta em permitir a entrada de novos membros, pois isso diminuiria seu peso no bloco. O país também mantém uma “parceria estratégica” com os EUA; faz parte da aliança militar e de segurança Quad, com os EUA, Japão e Austrália; e sua Marinha realiza exercícios militares regulares com os EUA.O que é significativo aqui é que um país como a Índia, aliado dos EUA e rival da China, desempenhou um papel importante em ajudar a Rússia a contornar as sanções americanas. A Índia compra petróleo russo com desconto e o revende para a Europa na forma de produtos refinados a um preço mais alto. Por enquanto, os EUA decidiram não tomar medidas contra a Índia.Até o momento, os BRICS não passam de uma aliança frouxa de países. A intimidação imperialista dos Estados Unidos sobre seus rivais é o que os aproxima e incentiva outros a se juntarem.Crise na EuropaEnquanto os EUA sofreram um relativo declínio em sua força e influência globalmente, as antigas potências imperialistas europeias – Grã-Bretanha, França, Alemanha e outras – decaíram muito mais desde seus antigos dias de glória, tornando-se potências mundiais de segunda categoria. Vale a pena notar que o papel imperialista dos países europeus foi particularmente enfraquecida na última década. Uma série de golpes militares, por exemplo, deslocou a França da África Central e do Sahel, em grande parte em benefício da Rússia.As potências europeias seguiram o imperialismo americano em sua guerra por procuração na Ucrânia contra a Rússia, algo que teve um impacto devastador em suas economias. Desde o colapso do stalinismo em 1989-1991, a Alemanha seguiu uma política de expansão de sua influência para o Leste e estabeleceu laços econômicos estreitos com a Rússia. A indústria alemã se beneficiou da energia russa barata. Antes da guerra na Ucrânia, mais da metade do gás natural da Alemanha, um terço de todo o petróleo e metade de suas importações de carvão vinham da Rússia.Esta foi uma das razões para o êxito da indústria alemã no mundo, sendo as outras duas a desregulamentação do mercado de trabalho (implementada sob governos social-democratas) e o investimento na indústria na segunda metade do século passado. O domínio da União Europeia pela classe dominante alemã e o livre comércio com a China e os EUA completaram um ciclo virtuoso que permitiu à Alemanha sair aparentemente ilesa da crise de 2008.A situação foi semelhante para a UE como um todo, onde a Rússia foi a maior fornecedora de petróleo (24,8%), gás de gasoduto (48%) e carvão (47,9%). As sanções europeias impostas à Rússia após o início da guerra na Ucrânia levaram a preços de energia muito mais altos, com um efeito cascata sobre a inflação e a perda de competitividade das exportações europeias. No final, a Europa teve que importar gás natural liquefeito (GNL) muito mais caro dos EUA e produtos petrolíferos russos muito mais caros através da Índia.De fato, grande parte do gás da Alemanha ainda vem da Rússia, só que agora na forma de GNL, a um preço muito mais alto. As classes dominantes alemã, francesa e italiana deram um tiro no próprio pé e agora estão pagando um preço alto. Já sob a presidência de Biden, os Estados Unidos compensaram seus aliados europeus travando uma guerra comercial contra eles por meio de uma série de medidas protecionistas e subsídios industriais.A Comunidade Econômica Europeia, e posteriormente a União Europeia, representou uma tentativa das potências imperialistas enfraquecidas do continente de se unirem após a Segunda Guerra Mundial, na esperança de ter maior influência na política e na economia mundiais. Na prática, o capital alemão dominava as outras economias mais fracas. Embora houvesse crescimento econômico, um certo grau de integração econômica foi alcançado e até mesmo uma moeda única.No entanto, as diferentes classes dominantes nacionais que a compunham permaneceram existentes, cada uma com seus próprios interesses particulares. Apesar de toda a conversa, não há uma política econômica comum, uma política externa unificada e um exército único para implementá-la. Enquanto o capital alemão se baseava em exportações industriais competitivas e seus interesses estavam no Leste, a França recebe grandes somas em subsídios agrícolas da UE, e seus interesses imperialistas encontram-se nas ex-colônias francesas, principalmente na África.A crise da dívida soberana que se seguiu à recessão de 2008 levou a UE ao limite. A situação agora se agravou ainda mais. O recente relatório do ex-presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, descreve a crise do capitalismo europeu em termos alarmantes, mas não está equivocado. No fundo, a razão pela qual a UE não consegue competir com seus rivais imperialistas no mundo é o fato de não ser uma entidade econômico-política única, mas sim um conjunto de várias economias de pequeno e médio porte, cada uma com sua própria classe dominante, suas próprias indústrias nacionais, seus próprios conjuntos de regulamentações, etc. A economia europeia está esclerosada e foi ultrapassada por seus rivais em termos de crescimento de produtividade.As forças produtivas superaram o Estado-nação, e esse problema é particularmente grave nas economias pequenas, mas altamente desenvolvidas, da Europa.O declínio prolongado das potências imperialistas europeias foi mascarado pelo fato de os EUA estarem financiando sua defesa e apoiando a UE politicamente. Durante quase 80 anos, o imperialismo americano sustentou a Europa, sob seu domínio, como um baluarte contra a União Soviética. Esse foi um arranjo muito útil para o capitalismo europeu, pois conseguiu terceirizar uma parcela considerável de seus custos de defesa militar ao seu poderoso primo do outro lado do Atlântico.Isso agora acabou. O imperialismo americano sob Trump decidiu administrar seu declínio relativo tentando chegar a um acordo com a Rússia para se concentrar melhor em seu principal rival no cenário mundial: a China. O centro da política e da economia mundial não é mais o Atlântico, mas o Pacífico. Essa mudança vem se formando desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mas agora veio à tona de forma explosiva.Este é um grande choque para as relações mundiais que ninguém pode ignorar. Se os EUA querem chegar a um entendimento com a Rússia, isso deixa o imperialismo europeu em uma posição muito frágil. Os EUA não são mais seus amigos e aliados. Alguns chegaram a dizer que Washington agora considera a Europa um rival ou um inimigo.No mínimo, Trump deixou claro que os EUA não estão mais dispostos a subsidiar a defesa da Europa. A retirada do guarda-chuva protetor dos EUA, como alguns descreveram, revelou nitidamente todas as fraquezas acumuladas do imperialismo europeu, que se acumularam ao longo de décadas de declínio.A crise do capitalismo europeu tem importantes implicações políticas e sociais. A ascensão de forças populistas de direita, eurocéticas e antissistema em todo o continente é um resultado direto disso. A classe trabalhadora europeia, com suas forças praticamente intactas, não aceitará uma nova rodada de cortes de austeridade e demissões em massa sem lutar. O cenário está armado para uma explosão da luta de classes.Guerra no Oriente MédioO atual conflito no Oriente Médio só pode ser compreendido no contexto da situação mundial. O imperialismo americano havia se enfraquecido no Oriente Médio, enquanto Rússia, China e também o Irã se fortaleciam. Israel se sentiu ameaçado. O ataque de 7 de outubro foi um duro golpe para a classe dominante israelense. Destruiu o mito da invencibilidade e questionou a capacidade do Estado sionista de proteger seus cidadãos judeus, a questão-chave que a classe dominante israelense havia usado para aglutinar a população.Também expôs claramente o colapso dos Acordos de Oslo, assinados após o colapso do stalinismo. Tudo foi uma fraude cínica do início ao fim. A classe dominante sionista nunca cogitou a ideia de conceder aos palestinos uma pátria viável. Eles viam a Autoridade Nacional Palestina (AP) simplesmente como uma forma de terceirizar o policiamento dos palestinos. Esse descrédito do Fatah e da AP – vistos, com razão, como meros fantoches de Israel – levou, com a aquiescência de Israel, à ascensão do Hamas, visto por muitos como a única força na luta pelos direitos nacionais palestinos.Na realidade, porém, os métodos reacionários do Hamas levaram os palestinos a um beco sem saída, do qual é difícil vislumbrar qualquer saída.Os Acordos de Abraão, assinados em 2020 sob pressão do primeiro governo Trump, visavam estabelecer a posição de Israel na região como um ator legítimo e normalizar as relações comerciais entre Israel e os países árabes. Isso significaria o enterro das aspirações nacionais palestinas, algo que os regimes árabes reacionários estavam bastante dispostos a fazer. O ataque de 7 de outubro foi uma resposta desesperada a isso.O ataque foi inicialmente recebido com júbilo pelos palestinos, mas teve consequências terríveis. Deu a Netanyahu, que pouco antes havia enfrentado uma longa onda de protestos em massa, a desculpa perfeita para lançar uma campanha genocida contra Gaza. Netanyahu, Ben Gvir, Smotrich e companhia viram no ataque de 7 de outubro uma oportunidade de ouro. Sob o pretexto da “segurança” e da “proteção” israelenses, buscaram realizar uma limpeza étnica do maior número possível de palestinos em suas terras. Também buscaram reafirmar seu papel imperialista na região, ampliando a guerra em múltiplas frentes.Um ano depois, os israelenses reduziram Gaza a uma pilha de escombros fumegantes, mas não alcançaram seus objetivos declarados: a libertação dos reféns e a destruição do Hamas. Esses dois objetivos de guerra estavam em contradição direta. O primeiro exige um acordo negociado com o Hamas, enquanto o segundo impede que tais negociações ocorram. Houve uma indignação generalizada com o fato de o governo israelense estar preocupado apenas em destruir seu inimigo. Isso levou a manifestações em massa de centenas de milhares de israelenses e até mesmo a uma breve greve geral em setembro de 2024.O caráter dessas manifestações não foi de apoio à causa palestina, nem de oposição à guerra em si. No entanto, o fato de haver tamanha oposição em massa ao primeiro-ministro em meio à guerra é um indicativo da profundidade das divisões na sociedade israelense.O colapso de seu apoio levou Netanyahu a agravar a situação com a invasão do Líbano e um ataque ao Hezbollah, acompanhado de constantes provocações contra o Irã. Para se salvar politicamente, ele demonstrou repetidamente que estaria preparado para desencadear uma guerra regional, o que forçaria os EUA a intervir diretamente ao seu lado.Apesar do risco de que o massacre em Gaza pudesse levar à desestabilização revolucionária dos regimes árabes reacionários (Arábia Saudita, Egito e, sobretudo, Jordânia), Biden deixou claro que seu apoio a Israel era “de ferro”, e Netanyahu descontou esse cheque em branco repetidamente, buscando um caminho de escalada rumo a uma guerra regional. Além do massacre genocida em Gaza, ele lançou uma invasão terrestre ao Líbano, ataques aéreos contra o Irã, Iêmen e Síria e, em seguida, uma invasão terrestre à Síria.Embora a principal motivação de Netanyahu para estender o conflito ao Irã tenha sido sua salvação política devido aos seus problemas internos, parece claro que a guerra limitada de 12 dias entre Israel e Irã em junho passado contou com o apoio mais amplo entre a classe dominante israelense. O fortalecimento do regime iraniano na região nos últimos 20 anos foi visto pela burguesia sionista como uma ameaça a Israel. Mas o Irã havia ficado em uma posição mais frágil na região com a eliminação do regime sírio de Al-Assad e com o Hezbollah e o Hamas seriamente enfraquecidos. Assim, uma miniguerra que pudesse destruir o programa nuclear iraniano, ou mesmo levar à derrubada do regime, era uma causa que valia a pena apoiar. No final, Israel não conseguiu isso, e a repetição de um novo confronto militar entre os dois países é apenas uma questão de tempo.O colapso repentino e inesperado do regime de Assad na Síria alterou mais uma vez o equilíbrio de forças regional. A Turquia é uma potência capitalista menor em termos da economia mundial, mas possui grandes ambições regionais. Erdogan habilmente manipulou o conflito entre o imperialismo americano e a Rússia em seu próprio benefício.Percebendo que o Irã e a Rússia, com quem Erdogan firmou um acordo na Síria em 2016, estavam envolvidos em outros assuntos (a Rússia na Ucrânia e o Irã no Líbano), Erdogan decidiu apoiar a ofensiva dos jihadistas do HTS a partir de Idlib. Para surpresa de todos, isso precipitou o colapso completo do regime. O grau de esvaziamento do regime devido às sanções econômicas, à corrupção e ao sectarismo era muito maior do que se imaginava. A atual divisão da Síria é a continuação de mais de 100 anos de interferência imperialista, que remonta ao acordo Sykes-Picot.Em última análise, não pode haver paz no Oriente Médio enquanto a questão nacional palestina não for resolvida. Mas isso não pode ser alcançado sob o capitalismo. Os interesses da classe dominante sionista em Israel (apoiada pela potência imperialista mais poderosa do mundo) não permitem a formação de uma verdadeira pátria para os palestinos, e muito menos o direito de retorno de milhões de refugiados.Do ponto de vista puramente militar, os palestinos não podem derrotar Israel, uma potência capitalista imperialista moderna com uma sofisticada tecnologia militar e um serviço de inteligência inigualável. Israel também conta com total apoio do imperialismo americano.Então, em que outras forças os palestinos podem confiar? Não podem confiar nos regimes árabes reacionários, que só falam da causa palestina, mas a traíram e colaboraram com Israel e o imperialismo a cada passo.Os únicos verdadeiros amigos dos palestinos encontram-se nas ruas árabes – as massas oprimidas de trabalhadores, camponeses, pequenos comerciantes e os pobres urbanos e rurais. Mas sua tarefa imediata é acertar as contas com seus próprios governantes reacionários. Isso levanta a questão da abolição do capitalismo por meio da expropriação dos latifundiários, banqueiros e capitalistas. Sem isso, a revolução no Norte da África e no Oriente Médio jamais poderá ter êxito.Existe na região uma classe trabalhadora poderosa, sobretudo no Egito e na Turquia, mas também na Arábia Saudita, nos Estados do Golfo e na Jordânia. Uma revolta bem-sucedida em qualquer um desses países, levando a classe trabalhadora ao poder, mudaria o equilíbrio de forças. Isso criaria condições mais favoráveis para a libertação dos palestinos e prepararia o caminho para uma guerra revolucionária contra Israel, que inevitavelmente decorreria de toda a situação.O Estado de Israel e sua classe dominante sionista só podem ser derrotados dividindo a população do país em linhas de classe. No momento, a perspectiva de uma divisão em linhas de classe em Israel parece distante. No entanto, guerras e conflitos constantes podem eventualmente levar uma parte das massas israelenses à conclusão de que o único caminho para a paz é por meio de uma solução justa para a questão nacional palestina.Sem uma perspectiva de transformação socialista revolucionária da sociedade, guerras intermináveis, travadas por governos reacionários com potências imperialistas no comando, não resolverão nada. Sob o domínio do imperialismo, o cessar-fogo temporário e acordos de paz apenas prepararão o caminho para novas guerras. Mas a instabilidade geral, que é tanto a causa das guerras quanto suas consequências, criará as condições para um movimento revolucionário das massas no próximo período.A revolução palestina triunfará como uma revolução socialista e como parte de uma revolta geral da massa de trabalhadores e camponeses pobres contra os regimes reacionários da região, ou não triunfará de forma alguma. Os países do Oriente Médio e do Norte da África possuem recursos colossais inexplorados que poderiam garantir uma sociedade próspera. Em vez disso, toda a história do Oriente Médio e do Norte da África, desde a suposta independência do domínio imperialista direto, não passou de um pesadelo para a maioria da população. A burguesia demonstrou ser incapaz de resolver qualquer um dos problemas fundamentais.Um papel extremamente pernicioso foi desempenhado pelos stalinistas, que se basearam na falsa teoria das “duas etapas”, que separa artificialmente a revolução proletária da chamada revolução democrático-burguesa. Essa teoria reacionária levou a uma derrota desastrosa após a outra, criando condições para a ascensão de regimes ditatoriais reacionários e opressivos e para a loucura do fundamentalismo religioso em um país após o outro. Somente uma revolução socialista vitoriosa pode pôr fim a esse pesadelo.Somente uma federação socialista pode resolver a questão nacional de uma vez por todas. Todos os povos, palestinos e judeus israelenses, mas também curdos, armênios e todos os demais, teriam o direito de viver em paz dentro de tal federação socialista. O potencial econômico da região seria plenamente realizado sob um plano socialista comum de produção. Desemprego e pobreza seriam coisas do passado. Somente com base nisso, os antigos ódios nacionais e religiosos poderiam ser superados. Seriam como a lembrança de um pesadelo.Esta é a única esperança real para os povos do Oriente Médio.Corrida armamentista e militarismoHistoricamente, qualquer mudança significativa na força relativa das diferentes potências imperialistas tendia a ser resolvida por meio da guerra, principalmente nas duas guerras mundiais do século XX. Hoje, a existência de armas nucleares exclui uma guerra mundial aberta no futuro.Os capitalistas entram em guerra para garantir mercados, áreas de investimento e esferas de influência. Uma guerra mundial hoje levaria à destruição em massa da infraestrutura e da vida, da qual nenhuma potência se beneficiaria. Seria necessário um líder bonapartista alucinado governando uma grande potência nuclear para que uma guerra mundial ocorresse. Isso só seria possível com base em derrotas decisivas da classe trabalhadora. Essa não é a perspectiva que temos pela frente.No entanto, o conflito entre as potências imperialistas, que reflete a luta para afirmar uma nova redivisão do planeta, domina a situação mundial. Isso se expressa em várias guerras regionais, que estão causando destruição massiva e matando dezenas de milhares de pessoas, bem como em tensões comerciais e diplomáticas, que aumentam constantemente. O ano passado registrou o maior número de guerras desde o fim da Segunda Guerra Mundial.Isso levou a uma nova corrida armamentista, ao crescimento do militarismo nos países ocidentais e ao aumento da pressão para reconstruir, reequipar e modernizar as forças armadas em todos os lugares. Os Estados Unidos devem gastar cerca de US$ 1,7 trilhão ao longo de 30 anos para renovar seu arsenal nuclear. Agora, decidiram implantar mísseis de cruzeiro em solo alemão pela primeira vez desde a Guerra Fria.Há forte pressão sobre todos os países da OTAN para que aumentem seus gastos com defesa. A China anunciou um aumento de 7,2% nos gastos com defesa. Como resultado da guerra na Ucrânia, em 2024 os gastos militares da Rússia cresceram 40%, atingindo 32% do gasto federal total e 6,68% do PIB. Os gastos militares globais em 2023 atingiram US$ 2,44 trilhões, um aumento de 6,8% em relação a 2022. Este foi o maior aumento desde 2009 e o nível mais alto já registrado.São quantias exorbitantes, sem falar no desperdício na força de trabalho e no desenvolvimento tecnológico, que poderiam ter sido utilizados para fins socialmente necessários. Este é um ponto que os comunistas devem enfatizar em nossa propaganda e agitação.Seria uma simplificação dizer que os capitalistas estão embarcando em uma nova corrida armamentista para impulsionar o crescimento econômico. De fato, o gasto com armas é inerentemente inflacionário e qualquer efeito sobre a economia será de curto prazo e compensado por cortes em outros setores. A longo prazo, constitui um dreno na economia produtiva, ao desviar a mais-valia. Em vez disso, é o conflito entre potências imperialistas pela redivisão do mundo que está alimentando o aumento dos gastos militares. O capitalismo, em sua fase imperialista, inevitavelmente leva a conflitos entre as potências e, por fim, à guerra.A luta contra o militarismo e o imperialismo tornou-se um ponto central da nossa época. Somos ferrenhos oponentes das guerras imperialistas e do imperialismo, mas não somos pacifistas. Devemos enfatizar que a única maneira de garantir a paz é a abolição do sistema capitalista que gera a guerra.A luta do capitalismo europeu para se rearmarNo caso da Europa, o impulso em direção ao militarismo e aos gastos com armas é resultado do fortalecimento do imperialismo russo, que emergiu vitorioso da guerra na Ucrânia, da retirada do apoio militar dos EUA e da tentativa das potências europeias de demonstrar que ainda desempenham um papel no cenário mundial.Os gastos militares da Rússia em 2024 foram de cerca de 13,1 trilhões de rublos (US$ 145,9 bilhões), o que representa 6,68% do PIB do país. Isso representa um aumento de mais de 40% em relação ao ano anterior. Quando ajustado pela paridade do poder de compra, esse valor se aproxima de US$ 462 bilhões.Enquanto isso, a Europa aumentou substancialmente seus gastos militares em 50% em termos nominais desde 2014, atingindo um total coletivo de US$ 457 bilhões em 2024. Nesse caso, ajustar o valor russo para o poder de compra faz sentido, já que o que estamos comparando é a quantidade de tanques, peças de artilharia ou munição que cada dólar pode comprar, na Rússia e na Europa. Em outras palavras, a Rússia está gastando mais que toda a Europa em termos militares.A Rússia também supera toda a OTAN, incluindo os EUA, em termos de produção de munição, mísseis e tanques. Segundo estimativas da inteligência da OTAN, a Rússia produz 3 milhões de munições de artilharia por ano. Toda a OTAN, incluindo os EUA, tem capacidade para produzir apenas 1,2 milhão, menos da metade da produção russa.Além disso, a guerra na Ucrânia transformou completamente a forma como a guerra é conduzida. Como sempre, a guerra permite o teste de novas tecnologias e técnicas em condições reais, que são rapidamente aplicadas e adaptadas ao campo de batalha. Os exércitos combatentes são forçados a desenvolver rapidamente meios e táticas para contrabalançá-las. Presenciamos à introdução de um grande número de drones (aéreos, terrestres e marítimos), técnicas de vigilância eletrônica e interferência, etc.Os únicos exércitos que têm experiência real com esses novos métodos são os da Ucrânia e da Rússia. O Ocidente está seriamente atrasado em todos esses campos. A guerra na Ucrânia alterou drasticamente o equilíbrio de forças militares em favor da Rússia.Isso não significa que a Rússia tenha interesse em invadir a Europa, nem mesmo parte dela. Essa suposta ameaça tem sido massivamente alardeada pela classe dominante para justificar um grande aumento nos gastos militares e na tentativa de reduzir a oposição pública. A Rússia não tem interesse em invadir o oeste da Ucrânia – o que seria um empreendimento muito mais custoso e desgastante do que a atual campanha militar russa – e muito menos em invadir países da OTAN.A ameaça, do ponto de vista do capitalismo europeu, não é realmente a de uma invasão russa ou de um conflito militar aberto entre os exércitos russo e europeu. Isso seria muito custoso para ambos os lados. Além disso, envolveria dois lados que possuem armas nucleares, uma proposta muito perigosa.A verdadeira ameaça para o imperialismo europeu em crise é ter sido abandonado ou rebaixado pela maior potência imperialista do mundo, ao mesmo tempo em que é vizinho de outra poderosa potência imperialista, que está emergindo maciçamente fortalecido da guerra atual.A Rússia tem uma grande influência (militar e em termos de recursos energéticos) e já exerce uma forte influência no cenário político europeu. Países como Hungria e Eslováquia já romperam com a orientação atlantista das potências europeias dominantes. Em outros, há algumas forças políticas movendo-se em direção semelhante, em maior ou menor grau (Alemanha, Áustria, Romênia, República Tcheca, Itália).O que o imperialismo europeu defende não são as vidas e os lares dos povos europeus, mas os lucros de suas empresas multinacionais e as ambições imperialistas predatórias de suas classes dominantes capitalistas. A Rússia é rival do capitalismo alemão na Europa Oriental e Central. A Rússia é rival do imperialismo francês na África.A prolongada crise do capitalismo europeu significa que, uma vez retirada a proteção dos EUA, não conseguirá se manter sozinho. Corre o risco de ser dividido entre os interesses rivais dos EUA, da Rússia e da China. As tendências centrífugas estão se tornando cada vez mais fortes, à medida que cada classe capitalista começa a afirmar seus próprios interesses nacionais. Não está de todo excluído que estas tendências acabem por conduzir à desintegração da União Europeia.A economia mundial: da globalização às guerras comerciais e ao protecionismoA abrangente imposição de tarifas por Trump em 2 de abril marcou um ponto de virada na economia mundial. Mas o processo de desaceleração da globalização e a transição para o protecionismo já haviam começado antes.A recessão mundial de 2008 foi um ponto de inflexão na crise capitalista. No período imediatamente anterior à crise, a economia mundial crescia em torno de 4% ao ano. Entre a crise de 2008 e o choque da pandemia de 2020, cresceu apenas 3%. Antes das tarifas de Trump, já estava em torno de 2%, a menor taxa de crescimento em três décadas.De fato, a economia mundial nunca se recuperou da recessão de 2008. Houve um resgate maciço dos bancos na época, uma medida desesperada para salvar o setor financeiro. Os Estados europeus acumularam dívidas e déficits orçamentários enormes e foram forçados a implementar medidas de austeridade. A classe trabalhadora estava sendo obrigada a pagar o preço da crise do capitalismo.Em pânico, a classe dominante respondeu com um programa massivo de flexibilização quantitativa, a injeção de uma vasta quantidade de dinheiro na economia e a redução sem precedentes das taxas de juros a zero ou mesmo a valores negativos. Isso, no entanto, não produziu uma recuperação, pois as famílias também estavam sobrecarregadas com dívidas. Não havia campo produtivo para investimento na produção, então o excesso de liquidez inflou bolhas nos preços das ações, nas criptomoedas, etc.As medidas de austeridade implementadas por governos em todos os lugares levaram a movimentos de massa em todo o mundo em 2011: a revolução no Norte da África e no Oriente Médio, o movimento Occupy nos EUA, o movimento dos “indignados” na Espanha, o movimento da Praça Sintagma na Grécia, etc.Isso refletiu um crescente descontentamento contra o sistema capitalista, que estava fazendo a classe trabalhadora pagar pelas medidas de resgate bancário, o que levou ao descrédito de todas as instituições burguesas. Essa mudança de consciência – como vimos – encontrou expressão política na ascensão de um novo tipo de reformismo de esquerda por volta de 2015: Podemos, Syriza, Corbyn, Mélenchon, Sanders e os “governos progressistas” na América Latina.As massas foram atraídas por eles devido à sua oposição aparentemente radical à austeridade. Esse processo chegou ao fim quando as limitações do reformismo ficaram expostas: com a traição do governo Syriza na Grécia; o apoio de Sanders a Clinton; o colapso do Corbynismo; e a entrada do Podemos em um governo de coalizão na Espanha.Nos países dominados pelo imperialismo, assistimos a revoltas e insurreições em massa (em Porto Rico, Haiti, Equador, Chile, Sudão, Colômbia, etc.). As mobilizações em massa durante a luta por uma república na Catalunha em 2017 e 2019 também fizeram parte dessa mesma tendência geral.A falta de liderança, no entanto, fez com que nenhuma delas terminasse na derrubada do capitalismo, o que teria sido possível.A pandemia de COVID-19 em 2020 representou um choque externo para a economia em um momento em que ela já caminhava para uma nova recessão (sem nunca ter se recuperado totalmente da crise de 2008). Isso finalmente levou a economia mundial ao limite.Novamente, em pânico, a classe dominante recorreu a medidas desesperadas para evitar uma explosão social. Nos países capitalistas avançados, os trabalhadores foram pagos pelo Estado para ficarem em casa, a um custo enorme para as finanças públicas, que já estavam sobrecarregadas com as dívidas da crise anterior.Nos últimos 15 anos, repetidas tentativas de reanimar a economia mundial, injetando enormes quantidades de liquidez no sistema por meio da flexibilização quantitativa, das taxas de juros historicamente baixas (2009-21) e outras medidas de pânico semelhantes, fracassaram completamente em alcançar qualquer crescimento econômico substancial. Os capitalistas, apesar de receberem uma chuva de dinheiro, não investiram.O fator-chave foi que os capitalistas precisam de um mercado onde possam vender seus produtos para obter lucros. O acúmulo maciço de dívidas significa que famílias e empresas não conseguem impulsionar o consumo.A dívida mundial combinada de famílias, estado e empresas atingiu cerca de US$ 313 trilhões, ou 330% do PIB mundial, acima dos cerca de US$ 210 trilhões de uma década atrás.A dívida reflete o fato de que os limites do sistema foram levados ao ponto de ruptura e agora age como uma enorme barreira a qualquer desenvolvimento futuro. A combinação de altos níveis de dívida pública e de taxas de juros mais altas já levou uma série de países dominados ao limite. Outros os seguirão.A pandemia também impactou a consciência, revelando a incapacidade do sistema capitalista de lucro privado de lidar com uma emergência sanitária e como o lucro veio antes da vida humana para as gigantes farmacêuticas.Nas décadas de 1990 e 2000, houve um certo crescimento na economia mundial, embora a taxa de crescimento tenha sido substancialmente menor do que durante o boom do pós-guerra de 1948-1973, quando houve um desenvolvimento significativo das forças produtivas. Além disso, o crescimento econômico no período que antecedeu 2000 baseou-se na expansão do crédito e na “globalização”. Isso permitiu que o sistema ultrapassasse seus limites, parcialmente e por um período. A globalização significou a expansão do comércio mundial, a redução das barreiras tarifárias, o barateamento de bens de consumo e a abertura de novos mercados e campos de investimento em países dominados pelo imperialismo.Agora, todos esses fatores se transformaram em seu oposto. A expansão do crédito e da liquidez se transformou em uma montanha de dívidas.A globalização (a expansão do comércio mundial) foi um dos principais motores do crescimento econômico por um longo período após o colapso do stalinismo na Rússia e a restauração do capitalismo na China e sua integração à economia mundial. Em vez disso, o que temos agora são barreiras tarifárias e guerras comerciais entre todos os principais blocos econômicos (China, UE e EUA), cada um tentando salvar sua própria economia às custas dos outros.Em 1991, o comércio mundial representava 35% do PIB mundial, um valor que se manteve basicamente inalterado desde 1974. Em seguida, iniciou-se um período de forte crescimento, atingindo um pico de 61% em 2008. Desde então, permaneceu estagnado.Antes da recente rodada de tarifas, o FMI projetava que o comércio mundial cresceria apenas 3,2% ao ano no médio prazo, um ritmo bem abaixo da sua taxa média de crescimento anual de 4,9% entre 2000 e 2019. A expansão do comércio mundial não é mais um motor do crescimento econômico como o foi no passado. Agora, todo o processo se inverteu.A tendência ao protecionismo, um sintoma da crise do capitalismo, vinha se gestando há algum tempo. Em 2023, governos em todo o mundo introduziram 2.500 medidas protecionistas (incentivos fiscais, subsídios direcionados e restrições comerciais), o triplo do número de cinco anos antes.Durante a primeira presidência de Trump, os EUA adotaram uma postura protecionista agressiva, não apenas contra a China, mas também contra a UE, política que continuou sob Biden. Biden promulgou uma série de leis (CHIPS, a chamada Lei de Redução da Inflação, etc.) e medidas destinadas a beneficiar a produção americana em detrimento das importações do resto do mundo. Desde a reeleição de Donald Trump, todas as tendências ao protecionismo se aceleraram acentuadamente e agora levaram a uma guerra comercial aberta.A ascensão do protecionismo e a implantação de tarifas atuarão como mais um choque para a economia global, após a pandemia e a guerra na Ucrânia. Isso aumentará as pressões inflacionárias persistentes na economia – além do financiamento do déficit, dos gastos militares, das mudanças demográficas e das mudanças climáticas –, ao mesmo tempo em que debilitará a demanda.No entanto, a situação econômica é muito precária. Existe a possibilidade de uma nova recessão no próximo período, e mesmo uma depressão não pode ser descartada.Tarifas de TrumpA forte guinada de Trump em direção ao protecionismo e à guerra comercial aberta com a China é um sintoma da crise do capitalismo americano. Significa reconhecer que as empresas manufatureiras americanas não podem competir no mercado global sem a intervenção estatal. Ao mesmo tempo, o protecionismo é uma forma de países capitalistas rivais fazerem outros países pagarem o preço da crise. “América em primeiro lugar” significa necessariamente “todos os demais por último”.Com suas amplas medidas protecionistas, Trump persegue vários objetivos: 1) penalizar a importação de produtos manufaturados e, assim, trazer empregos na indústria de volta aos EUA; 2) impedir a ascensão da China como rival econômica; 3) usar os recursos das tarifas para aliviar o déficit orçamentário dos EUA, de modo a manter os cortes de impostos; 4) usar as tarifas como moeda de troca em negociações com outros países, a fim de extrair concessões políticas e econômicas.É verdade que algumas empresas anunciaram investimentos nos EUA como forma de contornar as tarifas e manter o acesso ao mercado americano (o maior mercado consumidor do mundo). Mas a instalação de novas fábricas é um processo que levará algum tempo e qualquer ganho em termos de novos empregos provavelmente será contrabalançado pelo impacto de curto prazo das tarifas nas cadeias de suprimentos.Hoje, após 30 anos de globalização, as cadeias de suprimentos estão extremamente alongadas, com diferentes países se especializando em diferentes partes do processo produtivo. A indústria automobilística nos EUA, México e Canadá é extremamente integrada, com peças cruzando fronteiras diversas vezes antes de serem montadas por etapas em diferentes países. Qualquer movimento no sentido de encurtar as linhas de suprimentos terá um impacto disruptivo imediato na economia, o que levará a produtos mais caros ou até mesmo escassos em alguns casos. A incerteza criada pelo uso das tarifas por Trump como ferramenta de negociação também tem um impacto negativo nas decisões de investimento.As economias dos EUA e da China estão profundamente interligadas e são mutuamente dependentes. Para os EUA, atualmente não há substituto viável para a manufatura chinesa – os produtos chineses são acessíveis e de alta qualidade. Os esforços para removê-los do mercado americano, como os perseguidos por Trump, provavelmente causariam sérios prejuízos econômicos muito antes que qualquer retomada da manufatura americana pudesse começar, se é que isso aconteceria.Qualquer tentativa de desfazer essa relação terá consequências negativas para a economia mundial como um todo. Lembremos que, após 1929, foi uma guinada geral em direção ao protecionismo que levou o mundo da recessão econômica para a depressão. O volume do comércio global caiu 25% entre 1929 e 1933, e grande parte disso foi resultado direto do aumento das barreiras comerciais.Por um longo período, a globalização permitiu que o sistema capitalista ultrapassasse parcial e temporariamente os limites do Estado-nação. O protecionismo representa uma tentativa de restringir as forças produtivas aos estreitos limites do Estado-nação, a fim de reafirmar a dominação do imperialismo americano sobre os demais. Como Trotsky alertou na década de 1930:“Em ambos os lados do Atlântico, desperdiça-se muita energia mental em esforços para resolver o fantástico problema de como fazer o crocodilo voltar ao ovo. O nacionalismo econômico ultramoderno está irrevogavelmente condenado por seu próprio caráter reacionário; ele retarda e reduz as forças produtivas do homem. (Nacionalismo e Vida Econômica, 1934)Como era de se esperar, líderes sindicais em todos os lugares estão respondendo ao protecionismo alinhando-se às suas próprias classes dominantes “em defesa dos empregos” em seus próprios países. Os comunistas devem se posicionar com uma perspectiva internacionalista e independente de classe. O inimigo da classe trabalhadora é a classe dominante, principalmente a nossa, em nosso país, e não os trabalhadores de outros países.Diante do fechamento de fábricas, devemos promover o slogan da ocupação. Em vez de mais resgates estatais de empresas privadas, exigimos a abertura dos livros contábeis e a nacionalização sob o controle dos trabalhadores. Se as fábricas não podem funcionar com fins lucrativos sob o capitalismo, elas devem ser expropriadas, reequipadas e readaptadas para cumprir propósitos socialmente úteis, sob um plano democrático de produção. Nem o livre comércio nem o protecionismo são do interesse da classe trabalhadora. Essas são apenas duas políticas econômicas diferentes com as quais a classe dominante tenta lidar com as crises do capitalismo. Nossa alternativa é derrubar o sistema que as causa.Crise de legitimidade das instituições burguesasA crise do capitalismo, como um sistema econômico que agora é incapaz de desenvolver as forças produtivas em grau significativo e, consequentemente, de melhorar os padrões de vida de uma geração para a outra, levou a uma profunda e crescente crise de legitimidade de todas as instituições políticas burguesas.Há uma polarização obscena da riqueza, com um pequeno grupo de bilionários aumentando seus ativos, enquanto um número crescente de trabalhadores encontra cada vez mais dificuldades para sobreviver e enfrenta cortes de austeridade, o poder de compra dos salários sendo consumido pela inflação, o aumento das contas de energia, uma crise imobiliária, etc.A mídia, os políticos, os partidos políticos estabelecidos, os parlamentos, o judiciário, todos são vistos como representantes dos interesses de uma pequena elite privilegiada, tomando decisões para defender seus próprios interesses egoístas e mesquinhos, em vez de atender às necessidades da maioria.Isso é extremamente significativo, visto que a classe dominante, em tempos normais, governa por meio dessas instituições, que são geralmente aceitas e vistas como representantes da “vontade da maioria”. Agora, isso está sendo questionado por camadas cada vez mais amplas da sociedade.Em vez do mecanismo normal da democracia burguesa, que serve para amenizar as contradições de classe, a ideia da ação direta para atingir os próprios objetivos está se tornando cada vez mais aceita. Um artigo no Le Monde alertou Macron, na França, de que, ao impedir que o partido com a maioria dos parlamentares eleitos formasse governo, ele corria o risco de a população chegar à conclusão de que as eleições não servem para nada. Nos EUA, um em cada quatro cidadãos acredita que a violência política pode ser justificada para “salvar” o país, um aumento em relação aos 15% do ano anterior. Nesse sentido, é importante destacar o aumento das tendências terroristas nos Estados Unidos. No espaço de poucos meses, assistimos ao suposto assassinato do CEO da United Healthcare por Luigi Mangione, como forma de denunciar os abusos das grandes empresas privadas de saúde; ao assassinato de dois funcionários da embaixada israelense em Washington por um ativista pró-palestino; e ao assassinato de uma congressista Democrata e seu marido em Minnesota; além de outro ataque, no mesmo dia, contra um senador Democrata, também em Minnesota. Estes últimos foram cometidos por fanáticos de direita. Esse fenômeno recorrente de terrorismo político nos EUA expressa a profunda inquietação e as enormes contradições que abalam a sociedade americana.A ascensão de demagogos anti-establishment é um indício dessa erosão da legitimidade da democracia burguesa e de suas instituições. No passado, quando um governo de direita caía em descrédito, era substituído por um governo social-democrata de “esquerda”, e, quando este caía em descrédito, era substituído por um governo conservador. Isso não é mais um processo automático.Em vez disso, há oscilações violentas para a esquerda e para a direita, que são caracterizadas na mídia como o crescimento do “extremismo político”. Mas o fortalecimento dos extremos na política é apenas uma forma de expressão do processo de polarização social e política, que, por sua vez, é um reflexo do acirramento da luta de classes. O colapso resultante do centro político é o que aterroriza a classe dominante. Eles desejam detê-lo por todos os meios à sua disposição, mas são impotentes para fazê-lo.A razão para isso não é difícil de entender. Hoje, os governos de esquerda e de direita basicamente implementam as mesmas políticas de cortes e austeridade. Isso leva ao descrédito geral da política, a um aumento constante da abstenção e ao surgimento de todo tipo de alternativas de terceiros partidos, muitas vezes de natureza efêmera. Demagogos de direita conseguiram capitalizar o clima antissistema existente também devido à incapacidade da “esquerda” oficial de oferecer qualquer alternativa real.O clamor do establishment capitalista liberal sobre o “perigo do fascismo” e a “ameaça da extrema direita” serve para angariar apoio para o mal menor, a ideia de que “devemos todos nos unir para defender a democracia”, de que devemos “defender a República”. Tudo isso em um momento em que, na maioria dos países, são os liberais que estão no poder, realizando ataques à classe trabalhadora, incitando o militarismo… e atacando os direitos democráticos.Assim, Trump é chamado de “fascista” ou “autoritário” quando segue uma política de expulsão de estrangeiros por seu apoio à Palestina. Como devemos então chamar os governos de países europeus que proibiram e reprimiram brutalmente as manifestações pró-Palestina? Como chamamos isso quando, na Alemanha e na França, estrangeiros estão sendo presos e deportados por apoiar a Palestina?Os liberais estão usando os tribunais para implementar medidas completamente antidemocráticas a fim de impedir que políticos de quem não gostam se candidatem às eleições (como Le Pen na França) ou, como no caso da Romênia, para cancelar eleições quando não gostam do resultado! E então se voltam e clamam por “unidade para defender a democracia” e por um “cordão sanitário contra a extrema direita”.Esta é uma política criminosa que, na verdade, serve para aumentar o apoio aos demagogos de direita, que podem então dizer: “Vejam, direita e esquerda são todas a mesma coisa”.Os comunistas lutarão contra qualquer medida reacionária contra os interesses da classe trabalhadora e contra os direitos democráticos, mas seria fatal serem vistos de alguma forma apoiando a “democracia” em geral (o que significa apoio ao Estado capitalista) ou misturando bandeiras com os liberais no ataque aos demagogos de direita.Na realidade, o apelo dos demagogos de direita sempre revelará seu caráter ilusório na medida em que entrar em conflito com a situação real. Trump já está no poder nos EUA. Ele fez muitas promessas. Ele está se aproveitando das expectativas de milhões de pessoas que acreditam que ele realmente vai “Tornar a América Grande Novamente”. Mas isso é pura ilusão. Para a classe trabalhadora, tornar a América grande novamente significa empregos decentes e bem remunerados. Significa que eles podem chegar ao fim do mês sem serem forçados a trabalhar em dois ou três empregos diferentes, ou ter que vender plasma sanguíneo para sobreviver.Há fortes ilusões entre milhões de pessoas nos Estados Unidos de que Trump trará de volta os “bons velhos tempos” do pós-guerra. Se há uma coisa certa é que isso não vai acontecer. A crise do capitalismo significa que um retorno à era de ouro do boom do pós-guerra, ou à estrondosa década de 1920, está descartado hoje.Não está descartado que, por um curto período, algumas dessas medidas – por exemplo, tarifas que promovam o desenvolvimento industrial nos Estados Unidos em detrimento de outros países – possam ter algum impacto. Muitas também darão a Trump o benefício da dúvida por um período. Ele também pode usar o argumento de que é o establishment, o “estado profundo”, que não está permitindo que ele execute suas políticas.Mas, uma vez que a realidade se imponha e essas ilusões sejam dissipadas, o arraigado sentimento anti-establishment que impulsionou Trump ao poder levará a uma forte mudança para o lado oposto do espectro político. Veríamos uma oscilação igualmente brusca e violenta do pêndulo para a esquerda.Há um artigo de Trotsky intitulado “Se a América se Tornasse Comunista“, onde ele fala sobre o temperamento americano, que descreve como “enérgico e violento”: “Seria contrário à tradição americana fazer uma grande mudança sem tomar partido e quebrar algumas cabeças.”O trabalhador americano é prático e exige resultados concretos. Ele está preparado para agir a fim de fazer as coisas. Farrell Dobbs, o líder da grande greve dos caminhoneiros de Minneapolis em 1934, passou diretamente de Republicano a líder trotskista. Em seu relato da greve, ele explica as razões disso. Para ele, os trotskistas eram os que ofereciam as soluções mais práticas e eficazes para lidar com os problemas que os trabalhadores enfrentavam.Uma situação explosiva: a radicalização da juventudeA verdade é que a situação mundial está grávida de potencial revolucionário. A onda insurrecional de 2019-2020 foi parcialmente interrompida pelos confinamentos da pandemia de COVID-19, mas as condições que a desencadearam não desapareceram. Em 2022, a revolta no Sri Lanka derrubou o presidente, com as massas invadindo o palácio presidencial. As greves em massa contra a contrarreforma da previdência na França, em 2023, colocaram o governo na corda bamba. Em 2024, as massas no Quênia, lideradas pela juventude revolucionária, invadiram o parlamento e forçaram a retirada do projeto de lei das finanças. Em Bangladesh, um movimento da juventude estudantil, que enfrentou uma repressão brutal, levou a uma revolta nacional e à derrubada do odiado regime de Hasina.Uma característica comum a todos esses movimentos é o papel de liderança desempenhado pela juventude. Qualquer pessoa com menos de 30 anos viveu toda a sua vida politicamente consciente em uma situação marcada pela crise de 2008, pela pandemia da COVID-19, pela guerra na Ucrânia e pelo massacre em Gaza.Mais recentemente, assistimos a movimentos de massa significativos na Turquia, na Sérvia e na Grécia. No caso da Grécia, a fúria contra o encobrimento do desastre ferroviário de Tempi, combinada com a raiva acumulada contra o empobrecimento em massa resultante da austeridade permanente e do profundo impasse do capitalismo grego, levou a uma greve geral massiva e às maiores manifestações de protesto no país desde a queda da ditadura. O caráter massivo da greve geral, que envolveu não apenas a classe trabalhadora, mas também outras camadas da sociedade (pequenos comerciantes, etc.), demonstra o verdadeiro equilíbrio de forças na sociedade capitalista moderna. Quando a classe trabalhadora se movimenta, ela pode arrastar consigo todas as camadas oprimidas.Na Sérvia, o movimento de protesto contra o desabamento da cobertura da estação de Novi Sad criou uma crise revolucionária, com a maior manifestação de protestos da história do país. Os estudantes desempenharam um papel decisivo, ocupando as universidades e organizando-se por meio de plenárias estudantis (assembleias), e estão conscientemente tentando disseminar o movimento para a classe trabalhadora e o povo em geral com a formação de zborovi, assembleias de massa em cidades e locais de trabalho.O movimento durou mais de 9 meses, com todas as tentativas do regime de Vučić de detê-lo dando errado e dando-lhe combustível adicional para continuar.Ambos os movimentos evidenciam duas características principais da situação atual: o enorme poder potencial da classe trabalhadora e seu peso social dominante, por um lado, e a extrema fragilidade do fator subjetivo.Além disso, camadas da juventude também se radicalizaram em torno das questões dos direitos democráticos, do movimento de massas de mulheres contra a violência e a discriminação (México, Espanha), a favor ou em defesa do direito ao aborto (Argentina, Chile, Irlanda, Polônia), a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo (Irlanda), do movimento de massas contra a brutalidade policial contra negros (EUA e Grã-Bretanha), etc.A crise climática também se tornou um fator de radicalização para esta geração de jovens que sente fortemente, e com razão, que, a menos que as coisas mudem radicalmente, a vida na Terra estará ameaçada e que a culpa é do sistema.A hipocrisia e a duplicidade de critérios do imperialismo em relação ao massacre em Gaza, as chamadas “regras internacionais” e a repressão policial ao movimento de solidariedade à Palestina abriram os olhos para a natureza do Estado capitalista, da mídia capitalista e das instituições internacionais. Em todos esses movimentos, encontramos uma ampla gama de ideias, incluindo feminismo, reformismo, stalinismo ou nacionalismo. Nossa tarefa é levantar uma posição de classe, destacando-nos claramente em meio à confusão pequeno-burguesa. Mas esta é sempre uma questão concreta, partindo das ideias que encontramos, bem como das tarefas e questões levantadas pelo próprio movimento. Dependendo das circunstâncias, geralmente começaríamos de forma amigável, partindo das coisas com as quais concordamos e, em seguida, apontando como as soluções propostas são inadequadas, vinculando-as às tarefas mais amplas da luta pelo socialismo. Como disse Lênin em abril de 1917: “apresentar uma explicação paciente, sistemática e persistente dos erros de suas táticas, uma explicação especialmente adaptada às necessidades práticas das massas”.Ao mesmo tempo, fica claro que uma parcela crescente da juventude se identifica com as ideias comunistas como a alternativa mais radical contra o sistema capitalista e pode ser alcançado diretamente com nosso programa completo. Não é uma maioria, nem mesmo entre os jovens, mas certamente é um avanço significativo.O colapso do stalinismo ficou para trás há 35 anos, então, para esta geração, a propaganda da classe dominante sobre “o fracasso do socialismo” tem muito pouco significado. O que os preocupa e com o qual eles têm sofrido diretamente é o fracasso do capitalismo!Crise de liderançaHá um acúmulo de material combustível em todo o mundo. A crise do sistema capitalista, em todas as suas manifestações, provocou uma revolta revolucionária após a outra. A chamada ordem mundial liberal, que moldou o mundo por décadas, está se desintegrando diante de nossos olhos. A virada ao protecionismo e às guerras comerciais está criando uma enorme turbulência econômica.A pergunta que precisamos nos fazer não é se haverá movimentos revolucionários no período que se abre diante de nós. Isso é inelutável. A questão é se estes movimentos resultarão em uma vitória para a classe trabalhadora.Vimos vários movimentos revolucionários e insurreições nos últimos 15 anos. Eles demonstraram o enorme ímpeto revolucionário e o poder das massas quando começam a se movimentar. Conseguiram superar a repressão brutal, os estados de emergência, os apagões de informação e os regimes mais repressivos. Mas, no fim das contas, nenhum deles levou a classe trabalhadora ao poder.O que faltou, em todas as ocasiões, foi uma liderança revolucionária capaz de levar o movimento à sua conclusão lógica. A revolução árabe de 2011 terminou em regimes bonapartistas repressivos (Egito, Tunísia) ou, pior ainda, em guerras civis reacionárias (Líbia e Síria). A revolta chilena foi canalizada de volta para o canal seguro do constitucionalismo burguês. A revolução sudanesa também terminou em uma guerra civil totalmente reacionária.Trotsky escreveu no Programa de Transição que “a crise histórica da humanidade se reduz à crise da liderança revolucionária”. Suas palavras são agora mais verdadeiras do que nunca. O fator subjetivo – isto é, uma organização de quadros revolucionários enraizada na classe trabalhadora – é extremamente frágil quando comparado às tarefas colossais impostas pela história. Por décadas, lutamos contra a maré e fomos repelidos por poderosas correntes objetivas.Isso significa inevitavelmente que as crises revolucionárias que se avizinham não serão resolvidas a curto prazo. Portanto, enfrentamos um período prolongado de altos e baixos, avanços e recuos. Mas, através de todos esses processos, a classe trabalhadora aprenderá e sua vanguarda se fortalecerá. Finalmente, a maré da história começa a fluir em nossa direção e seremos capazes de nadar com a maré, e não contra ela.Nossa tarefa é participar, lado a lado com as massas da classe trabalhadora, e conectar o programa concluído da revolução socialista com o anseio inacabado dos elementos mais avançados por uma mudança revolucionária fundamental.A fundação da Internacional Comunista Revolucionária (ICR) em 2024 foi um passo muito importante e não devemos subestimar o que conquistamos: uma organização internacional firmemente baseada na teoria marxista. Nos últimos tempos, nosso número cresceu significativamente. No entanto, devemos manter o senso das proporções: nossas forças ainda são completamente insuficientes para as tarefas que temos pela frente.A fragilidade do fator subjetivo significa inevitavelmente que, no próximo período, a radicalização das massas se expressará na ascensão e queda de novas formações e líderes reformistas de esquerda. Alguns deles podem até usar uma linguagem muito radical, mas todos esbarrarão nas limitações básicas do reformismo: sua incapacidade de colocar a questão fundamental da derrubada do sistema capitalista e da chegada da classe trabalhadora ao poder. Por essa razão, a traição é inerente ao reformismo. Mas, por um período, algumas dessas formações e líderes gerarão entusiasmo e obterão apoio das massas.É necessário haver um senso de urgência na construção da organização em todos os lugares. Não é a mesma coisa ter 100, 1.000 ou 10.000 membros quando as revoltas de massas irromperem novamente. Uma organização de 1.000 quadros treinados no início da Revolução Bolivariana na Venezuela, ou uma organização de 5.000 quadros com raízes na classe trabalhadora quando Corbyn conquistou a liderança do Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, poderia ter transformado a situação. No mínimo, com uma política e uma abordagem corretas em relação ao movimento de massas, eles poderiam ter se tornado uma força significativa dentro do movimento da classe trabalhadora, tornando-se um ponto de referência para camadas mais amplas.Nas condições certas, no calor dos acontecimentos, mesmo uma organização relativamente pequena pode se transformar em uma muito maior e lutar para conquistar a liderança das massas. Isso é para o futuro. A tarefa agora é o trabalho paciente de recrutar e, acima de tudo, treinar e educar os quadros, especialmente entre a classe trabalhadora e a juventude estudantil.Uma organização firmemente enraizada nas massas e munida da teoria marxista será capaz de responder rapidamente às rápidas mudanças e reviravoltas da situação. Mas uma liderança revolucionária não pode ser improvisada uma vez que os eventos revolucionários eclodam; ela deve ser preparada com antecedência. Essa é a tarefa mais urgente que enfrentamos hoje. Toda a situação depende, em última análise, do nosso êxito ou fracasso. Essa ideia deve ser a principal força motriz por trás de todo o nosso trabalho, sacrifício e esforços. Com a determinação e a persistência necessárias, podemos e iremos ter sucesso.