Marxismo vs Teoria Queer (parte 2)

A Teoria Queer é compatível com o marxismo? Pode haver algo como um “marxismo queer”? Yola Kipcak, de Viena, responde que “não” e explica porquê.

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[PARTE 1]

Sociedade de classes, opressão e cultura

A Teoria Queer chama a atenção para um aspecto do gênero que não pode ser explicado por uma definição biológica rígida: em nossa sociedade, somos forçados e socializados com papéis de gênero. Não há explicação biológica para o motivo pelo qual rosa deveria ser feminino e azul, masculino; por que as meninas devem brincar com bonecas enquanto os meninos brincam com Lego; e assim por diante. Desde muito jovens, somos informados de que mulheres são emocionais e irracionais, que são piores matemáticas e não devem mexer com política, e assim por diante. Tudo isso mostra que os gêneros cumprem mais do que apenas funções biológicas e que estão profundamente inseridos na cultura da nossa sociedade.

No entanto, a cultura em si não é um fenômeno arbitrário e acidental – ela emerge da base material de uma sociedade e da interação do homem com a natureza: “No processo de adaptação à natureza, na luta com suas forças hostis, a sociedade humana se desenvolve em uma organização de classe complexa. É a estrutura de classes da sociedade que mais decisivamente determina o conteúdo e a forma da história humana, ou seja, suas relações materiais e seus reflexos ideológicos. Ao dizer isso, também estamos dizendo que a cultura histórica tem um caráter de classe.” (Leon Trotsky: Culture and Socialism.) [título em português, Cultura e Socialismo]

Na maior parte de nossa existência, os humanos não viveram em sociedades de classes. Isso porque a existência de sociedades de classes requer um produto excedente, algo que uma classe possa enriquecer às custas de outra. Nas sociedades em que este não era o caso (Engels se referia a elas como “comunismo primitivo”), também não havia opressão feminina. No entanto, havia uma certa divisão do trabalho entre os sexos (devido à gravidez e ao nascimento), embora muito provavelmente essa divisão não fosse absoluta e rígida.

Essa divisão do trabalho, no entanto, não significava que as mulheres fossem consideradas inferiores aos homens – pelo contrário. Como aquelas que garantem a reprodução de nossa espécie, eram tidas em alta conta. Somente quando os humanos, em sua luta com a natureza, encontraram maneiras de criar um produto excedente, o que por sua vez levou ao surgimento da propriedade privada, a divisão do trabalho levou à opressão das mulheres. Nas palavras de Engels, essa foi a base para “a derrota histórica mundial do sexo feminino” – ou seja, um evento histórico, não “biológico”. Isso significa que, embora a opressão das mulheres em última instância tenha um fundamento biológico, não é uma lei natural férrea. A opressão das mulheres, ao longo de milhares de anos, criou raízes profundas em nossa sociedade e pode assumir muitas formas que não são estritamente derivadas do fato de que as mulheres podem ter filhos e, por sua vez, foram adaptadas ao respectivo sistema dominante.

A opressão está enraizada na sociedade de classes e se expressa de maneira diferente em circunstâncias históricas concretas. Os papéis de gênero, bem como nossas relações com a sexualidade, mudaram muitas vezes no curso da história humana; e eles mudam de acordo com as condições prevalecentes. Exemplos são a pederastia na Grécia Antiga, em oposição à homossexualidade de hoje, ou a definição de terceiros gêneros em algumas culturas, como os Muxes do povo Zapoteca. Mas também mulheres e homens receberam atributos diferentes ao longo do tempo, só precisamos comparar os ideais femininos de beleza durante a Renascença com as supermodelos de hoje.

A opressão das mulheres sob o capitalismo depende de papéis de gênero para manter intacta a unidade econômica da “família”, com todas as tarefas alocadas dentro dela, como um pilar importante do capitalismo. Dentro da família, são principalmente as mulheres que têm a função de fazer o trabalho doméstico, educar os filhos e cuidar dos idosos. A imagem da mulher como provedor de apoio emocional e maternidade é alimentada. No mercado de trabalho, em geral, as mulheres ganham menos e, se houver excesso de mão de obra, as mulheres são as primeiras a serem demitidas. Embora os casais homossexuais estejam sendo reconhecidos em um número crescente de países, isso anda de mãos dadas com sua subordinação ao papel da família, incluindo todas as suas responsabilidades. Os papéis de gênero, portanto, não são puramente fantasias culturais derivadas do mundo das idéias, mas brotam da base material da sociedade de classes – que se baseia na exploração e opressão – bem como em fatores biológicos.

A opressão, que também faz parte da sociedade de classes capitalista, penetra profundamente em nossas vidas e inclui a degradação das mulheres a objetos sexuais e sua submissão à violência doméstica. Há uma pressão muito real para se mover na sociedade como homens ou mulheres heterossexuais. A violência e a discriminação contra gays e pessoas transgênero são crescentes, apesar das inúmeras campanhas liberais pelos direitos LGBT. A luta de uma pessoa transgênero que opta por fazer terapia hormonal ou uma mudança de sexo dura anos e, em muitos casos, não pode ser paga. A discriminação na habitação, no local de trabalho e mesmo quando simplesmente se desloca em espaços públicos, continua a existir.

Todos esses aspectos de discriminação e opressão claramente criam uma raiva enorme e o desejo de escapar desse pesadelo. Compreender a origem da opressão das mulheres e o que está por trás da discriminação contra as chamadas sexualidades “desviantes” é crucial se quisermos encontrar uma maneira de acabar com isso. Na ausência de uma compreensão das raízes materiais da opressão das mulheres, discriminação da sexualidade e papéis de gênero, as ideias como a Teoria Queer (que coloca todo o seu foco na cultura, educação e opinião pública) inevitavelmente ganham popularidade. Observando a mutabilidade dos papéis de gênero ao longo do tempo, torna-se tentador tirar a conclusão de que não existem sexos biológicos “reais” por trás desses aspectos culturais.

Materialismo, ciência e sexo

A ideia de que os sexos são construídos é reforçada pelo fato de que a ciência sob o capitalismo não está livre dos interesses da classe dominante. Portanto, a ciência também não assume uma postura neutra na questão de sexo / gênero. Não esqueçamos que a Organização Mundial da Saúde classificou a homossexualidade como uma doença até o ano de 1992.

A compreensão científica comum e natural do sexo é distintamente abstrata e rígida (em seu Anti-Dühring, Engels chama esse tipo de pensamento de “modo metafísico de pensamento”). Se definirmos sexo apenas com base nos cromossomos XX (feminino) e XY (masculino), alguém pode corretamente apontar que existem pessoas com cromossomos XX ou XY distintos, mas com níveis hormonais atípicos, como é mostrado no tratamento escandaloso dado à atleta Caster Semenya, que está lutando uma batalha contínua contra ser forçada a tomar comprimidos de hormônios devido à sua vantagem “injusta” de testosterona. Se definirmos as mulheres apenas devido à sua capacidade de gerar filhos, então as mulheres inférteis não são mulheres reais? Se os sexos existem para garantir a reprodução sexual, por que existe a homossexualidade? E como podemos entender as mulheres transgênero que têm órgãos reprodutivos masculinos, mas se identificam como mulheres? Essa “área cinzenta”, as deficiências de um materialismo metafísico e mecânico, é onde a Teoria Queer entra no debate.

No entanto, esse problema de definições absolutas e rígidas das coisas não se coloca apenas em relação aos sexos. As mesmas perguntas podem ser feitas em relação a cada termo que usamos. Tomemos o termo “casa”, por exemplo. Uma casa é um edifício que fornece um telhado sobre a cabeça, no qual se pode entrar e morar. Mas uma casa sem telhado não é mais uma casa? Quantos buracos um telhado deve ter antes de deixar de ser um telhado? Em que ponto uma casa em processo de deterioração se torna uma ruína – e em que ponto uma casa se torna um castelo?

Aqui podemos ver que o materialismo metafísico, com sua rigidez e sua pretensão de imutabilidade, leva necessariamente a contradições, às quais a Teoria Queer se apega. Normalmente ninguém pensaria em negar a existência de casas – afinal, temos cidades inteiras cheias delas. Mas de acordo com a lógica da Teoria Queer, a resposta seria que não existem casas, uma vez que não existe uma definição perfeita de casas que cubra cada caso com precisão. As casas são simplesmente construções culturais, que são “inscritas” em objetos aleatórios.

O modo de pensamento metafísico que domina as ciências naturais e o sistema educacional não pode explicar a relação entre o indivíduo e o universal. A dialética marxista, no entanto, vê uma conexão necessária entre o indivíduo (ou seja, um homem infértil) e o universal (existem homens). O universal só existe por meio de sua expressão concreta – não há uma casa “eterna e completa” no mundo das ideias, mas apenas todas as casas reais neste mundo. Lenin descreve isso da seguinte maneira:

“Vamos começar com o que é mais simples, mais ordinário, comum, etc., com qualquer proposição: as folhas de uma árvore são verdes; John é um homem; Fido é um cão, etc. Aqui já temos a dialética (como o gênio de Hegel reconheceu): o indivíduo é o universal [“porque naturalmente não se pode ser da opinião de que possa haver uma casa (uma casa em geral), exceto todos as casas visíveis”]. Consequentemente, os opostos (o indivíduo se opõe ao universal) são idênticos: o indivíduo só existe na conexão que leva ao universal. O universal só existe no indivíduo e através do indivíduo. Cada indivíduo é (de uma forma ou de outra) um universal. Cada universal é (um fragmento, ou um aspecto, ou a essência de) um indivíduo. Cada universal abrange apenas aproximadamente todos os objetos individuais. Cada indivíduo entra incompletamente no universal, etc., etc… pois quando dizemos: John é um homem, Fido é um cachorro, esta é uma folha de uma árvore, etc., desprezamos uma série de atributos como contingentes; separamos a essência da aparência e contrapomos uma à outra.” (Lenin: On the Question of Dialectics, p. 353.) [título em português, Sobre a Questão da Dialética]

A busca por uma definição imutável e absoluta é sem esperança, pois o mundo em que vivemos está em constante mudança. Nossas análises e termos são uma aproximação da realidade, eles descrevem certos aspectos da realidade objetiva. Um materialismo rígido e abstrato (ou “metafísico”), por outro lado, tenta forçar nossas definições ao mundo, não importa o que aconteça, e exige que ele as cumpra. A Teoria Queer, no entanto, pega as definições rígidas e imutáveis ​​do materialismo mecânico, valora e argumenta que o próprio mundo material é rígido e imutável – e assim joga fora todo o mundo material, incluindo os sexos, declarando-os inválidos.

Ao criticar uma filosofia crua, a Teoria Queer vai ao outro extremo e adota sua imagem refletida. Nenhum fenômeno coincide diretamente com as categorias gerais pelas quais os conhecemos. Nenhum homem ou mulher se encaixa perfeitamente na categoria universal pela qual os conhecemos. No entanto, existem homens e mulheres. A natureza se expressa em padrões que nós, como humanos, podemos aprender a reconhecer. Nossas ideias de um homem ou mulher, despojadas de todos os atributos acidentais e não essenciais, são cruciais para nossa compreensão de qualquer homem ou mulher individualmente. Os teóricos queer, como seus irmãos pós-modernos, entretanto, negam a existência de qualquer forma de categoria ou padrões na natureza. Em vez de compreender a relação dialética entre o individual e o universal, eles renunciam ao universal e elevam o individual e o acidental ao nível de princípio.

Portanto, em vez de explorar a relação entre a base material (biologia, mas também a reprodução social dos humanos em uma sociedade de classes opressora) e a cultura, declara que a matéria não existe. Assim, absolutiza um aspecto da realidade e degenera em uma “teoria” que não pode explicar de onde vêm os papéis de gênero e a opressão e como podemos superá-los – em suma, no idealismo subjetivo. Lenin descreveu esta absolutização de uma verdade parcial vividamente:

“O idealismo filosófico é apenas um absurdo do ponto de vista do materialismo bruto, simples e metafísico. Do ponto de vista do materialismo dialético, por outro lado, o idealismo filosófico é um desenvolvimento unilateral e exagerado (inflação, distensão) de uma das características, aspectos, facetas do conhecimento em algo absoluto, divorciado da matéria, da natureza, apoteosado. Idealismo é obscurantismo clerical. Verdade. Mas o idealismo filosófico é … um caminho para o obscurantismo clerical através de uma das tonalidades do conhecimento infinitamente complexo (dialético) do homem. O conhecimento humano não é (ou não segue) uma linha reta, mas uma curva, que se aproxima infinitamente de uma série de círculos, uma espiral. Qualquer fragmento, segmento ou seção desta curva pode ser transformado (transformado unilateralmente) em uma linha reta completa e independente, que então … leva ao atoleiro, ao obscurantismo clerical (onde é ancorado pelos interesses de classe das classes dominantes). Retilinearidade e unilateralidade, rigidez e petrificação, subjetivismo e cegueira subjetiva – voilà as raízes epistemológicas do idealismo. (O idealismo filosófico) é uma flor estéril, sem dúvida, mas uma flor estéril que cresce na árvore viva do vivo, fértil, genuíno, poderoso, onipotente, objetivo e absoluto conhecimento humano.” (Ibidem, p. 361.)

Ao afirmar que os sexos e o desejo sexual são construídos, a Teoria Queer se enreda em contradições. Porque a próxima questão lógica é: porque exatamente masculino e feminino se cristalizaram nas categorias por meio das quais os humanos foram separados e oprimidos. Nesse ponto, ele divaga em especulações psicanalíticas e antropológicas, segundo as quais a “Lei” do tabu do incesto; linguagem; o complexo de Édipo e a inveja do pênis; e a influência persistente do intercâmbio de mulheres em sociedades históricas, gêneros criados e “heterossexualidade compulsória”.1 Como a heterossexualidade e a homossexualidade podem existir no reino animal, que não conhece a linguagem, e como sociedades sem o tabu do incesto conseguiram reproduzir são apenas dois dos muitos enigmas nesta linha de argumento. Confrontada com a realidade, a Teoria Queer é incapaz de explicá-la e bate contra a parede. Em resposta à pergunta “por que exatamente homens e mulheres?”, Butler finalmente escreve:

“Já consideramos o tabu do incesto e o tabu anterior contra a homossexualidade como os momentos geradores da identidade de gênero, as proibições que produzem identidade ao longo das grades culturalmente inteligíveis de uma heterossexualidade idealizada e compulsória. Essa produção disciplinar de gênero efetua uma falsa estabilização de gênero no interesse da construção heterossexual e da regulação da sexualidade no domínio reprodutivo.” (GT, p. 172, ênfase da autora.)

E depois de todos os livros e textos que nos explicaram em linguagem opaca que os sexos são fictícios e uma construção cultural, de forma vergonhosa e bem escondida, a natureza se espremeu de volta: é a reprodução sexual que determina os gêneros.

Os marxistas reconhecem que existem sexos e que esses sexos possibilitam a reprodução dos humanos. No geral, a maioria dos humanos pode ser designada ao sexo feminino ou masculino. Na dialética, existe o que se chama de “salto qualitativo”, um ponto em que a mudança gradual e quantitativa se transforma em nova qualidade. (Um exemplo frequentemente usado é a água fervente que, após um aumento “quantitativo” de calor, se transforma em vapor). Também, com os humanos, há uma série de fatores que, somados, nos permitem afirmar claramente que uma pessoa é homem ou mulher.

No entanto, isso não significa que existam apenas homens e mulheres. Também existe a intersexualidade. E também existem pessoas transgênero que têm uma identidade de gênero que não combina com seus órgãos reprodutivos, e pessoas não binárias que não são masculinas nem femininas. Seria absurdo acusá-los de ter uma “consciência errada” porque sua identidade não combina com seus órgãos reprodutivos. A identidade de uma pessoa é uma coisa muito complexa composta de uma combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais – que, em última análise, podem ser explicados materialmente. Mas o fato de que nossa consciência, o cérebro humano, ainda não foi totalmente explorado cientificamente para determinar em que medida quais fatores criam nossa identidade de gênero, não nos dá nenhuma razão para declará-los como puramente uma “ficção cultural” que não está ligada a nosso corpo.

Pelo contrário, esta representação da identidade como construção cultural dificulta os problemas reais de muitas pessoas trans em sua luta para obter acesso à cirurgia de redesignação sexual ou terapia hormonal. Demandas bastante práticas, como o direito ao aborto para as mulheres, produtos de higiene gratuitos ou medicamentos específicos para cada gênero (ginecologia), também não podem ser contestadas.

O poderoso discurso do poder

Se assumirmos, como faz a Teoria Queer, que sexos e sexualidade são construções culturais, temos que perguntar: como essa construção surgiu e por quê?

Judith Butler zomba de Friedrich Engels e das “feministas socialistas” quando tentam “localizar momentos de estruturas na história da cultura que estabelecem a hierarquia de gênero”. A própria Butler acredita que as sociedades do passado em que não havia opressão feminina são “fabricações autojustificativas.” (GT, p. 46.)

O fato de ter sido provado que tais sociedades realmente existiram só mostra sua ignorância em relação à realidade e sua rejeição da história.

Embora a explicação marxista seja muito “simplificadora” aos olhos da Teoria Queer, ela apresenta outras explicações para a “construção” da opressão na sociedade, que supostamente decorre das relações e estruturas de poder complexas, multifacetadas e com múltiplas camadas existentes na sociedade.

O conceito de poder que a Teoria Queer defende é emprestado do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), que nos círculos acadêmicos às vezes é visto como um sucessor ou “intensificador” do que eles chamam de “marxismo ortodoxo”. Como aluno de Louis Althusser, moveu-se durante algum tempo na órbita do Partido Comunista Francês (PCF) e foi membro (inativo) de 1951-1952, sem nunca ter estudado marxismo (como ele próprio admite).2

Durante os eventos revolucionários de maio de 68, Foucault estava ensinando em uma universidade na Tunísia quando protestos estudantis maciços estavam ocorrendo. Ele via como sua tarefa ensinar “algo novo” aos alunos que, em suas palavras, eram fortemente influenciados pelo marxismo.

A traição histórica da greve geral e do movimento de massas na França pela direção do PCF e o fracasso da revolução, ele considera como sendo culpa de um “hipermarxismo” no país naquela época. Ele classifica esse período de intensa luta de classes como um jogo de linguagem, uma busca por vocabulário:

“Pensando naquele período, eu diria que o que estava para acontecer definitivamente não tinha uma teoria própria, um vocabulário próprio … Quero dizer, refletir sobre o stalinismo, a política da URSS, ou a oscilação do PCF em termos críticos, enquanto se evitava a linguagem da direita, era uma operação complexa que criava dificuldades.” (Michel Foucault: Remarks on Marx, p. 110-111.)

Apesar de seu papel contraproducente no movimento real e apesar do fato de Foucault desenvolver suas visões conscientemente contra o marxismo, existe essa ideia entre os círculos universitários de que ele tinha afinidade com o marxismo e que suas ideias são progressistas e um bom ponto de conexão para a resistência.

Para a Teoria Queer, seu trabalho mais influente foi A História da Sexualidade (1976), no qual ele tenta traçar a história do discurso da sexualidade na história moderna e em que sua compreensão do poder desempenha um papel central. Segundo Foucault (e a Teoria Queer), o poder permeia todas as esferas da vida e se expressa em pares de opostos: velho-jovem, homem-mulher, homo-hetero, etc. Isso é frequentemente descrito como a obsessão ocidental com a binaridade (pares de opostos), que foi “inventado” pela filosofia ocidental.

O “poder”, segundo esse conceito, tem interesse em manter um judiciário injusto, o discurso médico-científico do homem e da mulher, a religião, bem como sistemas educacionais repressivos. Forma interesses de classe dos governantes, a vontade masculina de opressão patriarcal, bem como a repressão estatal. Também criou normas e proibições relativas às práticas sexuais.

O poder jurídico deve ser reconcebido como uma construção produzida por um poder gerador que, por sua vez, oculta o mecanismo de sua própria produção”, diz Butler. (GT, p. 121.) Então: o poder produz poder e então esconde o fato de que foi produzido pelo poder.

Mas o poder é ainda mais poderoso: não só produz opressão, mas também resistência. Opressão e resistência são apenas mais um par binário de opostos, assim como “velho-jovem” ou “homem-mulher”, construídos pelo discurso. O poder produz o discurso da rebelião, a ficção de que algo pode ser feito contra os opressores, a ilusão de que poderia haver um mundo sem poder. Partindo dessa lógica, Foucault chega a “analisar” o fim das monarquias absolutas por meio das revoluções burguesas como resultado de um discurso de poder sobre a justiça:

“Essas grandes formas de poder funcionavam como um princípio de direito […] tal era a linguagem do poder, a representação que ele se dava … Nas sociedades ocidentais desde a Idade Média, o exercício do poder sempre foi formulado em termos da lei. Uma tradição que remonta ao século XVIII ou XIX nos habituou a colocar o poder monárquico absoluto do lado do ilícito.” (Michel Foucault: The History of Sexuality, p. 87.)

Quão ridícula e simplificadora é a análise materialista e marxista de que o surgimento de um modo de produção capitalista derrubou a velha ordem feudal! Não, foi a “tradição” que nos levou a repentinamente acreditar que a monarquia era injusta e derrubá-la! Isso é resultado de uma teoria que vê a história como uma construção de discursos.

Dentro desse ciclo de poder autorreferencial, entretanto, nenhum dos textos Queer nos fornece uma explicação coerente do que o poder realmente é. Na primeira frase de suas palestras sobre o poder, Foucault afirma: “A análise dos mecanismos de poder não é uma teoria geral do que constitui o poder.” (Michel Foucault: Vorlesung zur Analyze der Macht-Mechanismen, p. 1, tradução livre para o inglês.)

Para dar ao leitor uma ideia de como Foucault tenta apreender o Poder, passaremos a palavra ao próprio autor e pedimos desculpas pela longa citação:

“Parece-me que o poder deve ser entendido em primeiro lugar como a multiplicidade de relações de força imanentes à esfera em que operam e que constituem sua própria organização; como o processo que, por meio de lutas e confrontos incessantes, as transforma, fortalece ou reverte; como o suporte que essas relações de força encontram umas nas outras, formando assim uma cadeia ou um sistema, ou, ao contrário, as disjunções e contradições que as isolam; e, por fim, como as estratégias de efetivação, cujo desenho geral ou cristalização institucional se consubstancia no aparato estatal, na formulação da lei, nas diversas hegemonias sociais. A condição de possibilidade do poder … não deve ser buscada na existência primária de um ponto central, em uma fonte única de soberania … é o substrato móvel das relações de força que, em virtude de sua desigualdade, geram constantemente estados de poder, mas os últimos são sempre locais e instáveis. A onipresença do poder: … porque se produz de um momento a outro, em todos os pontos, ou melhor, em todas as relações de um ponto a outro. O poder está em toda parte; não porque abrange tudo, mas porque vem de todos os lugares. … O poder não é uma instituição e não é uma estrutura; nem é uma certa força de que somos dotados; é o nome que se atribui a uma situação estratégica complexa em uma sociedade particular.” (Michel Foucault: The History of Sexuality, p. 92-93.)

Amém!

Não é surpreendente que Foucault tenha escrito A História da Sexualidade sob os efeitos de uma viagem de LSD. Engels uma vez escreveu que os cientistas, sempre que não conseguem entender um fenômeno, tendem a inventar uma nova “força” para servir de explicação:

“A fim de nos salvarmos de ter que dar a causa real de uma mudança provocada por uma função de nosso organismo, fabricamos uma causa fictícia, uma assim chamada força correspondente à mudança. Em seguida, transportamos este método conveniente também para o mundo externo e, assim, inventamos tantas forças quanto existem diversos fenômenos.” (Friedrich Engels: Dialectics of Nature, cap. 3.)

Esta é uma descrição muito adequada do que são “relações de poder” e “relações de força” para Foucault e a Teoria Queer. O poder é a entidade que tudo abrange, quase divina, que descreve tudo, que em um momento cria discursos e no próximo é ela mesma um produto do discurso. É o espírito que permeia tudo, do qual ninguém escapa e que nos une para sempre – afinal, também somos criações do poder! O absurdo dessa fantasia de poder mostra como o idealismo, por mais moderno que pareça, em última instância sempre leva ao obscurantismo religioso, como disse Lênin. E por último: algo que é tudo, um Ser livre de contradições e resistências que sempre existiu, no fundo é apenas… nada.

A Teoria Queer vai mais longe na questão dos opostos “binários”, que ela vê como um problema fundamental a ser tratado. Mas binários (ou opostos, como os marxistas os chamam) são partes intrínsecas da natureza. O filósofo grego Heráclito escreveu certa vez que “há harmonia na luta, como o arco e a lira”. Quente e frio, atração e repulsão; norte e sul, correntes positivas e negativas, assim como macho e fêmea, são todos exemplos da interpenetração e unidade dos opostos, que é a base de toda mudança na natureza, e a mudança é o modo de existência da natureza. Desejar o sexo masculino e feminino é como desejar o pólo sul, ou o ar frio. Ironicamente, os próprios teóricos queer parecem esquecer que desejar os binários é em si um “oposto binário” do estado binário de coisas existente.

Resistir é inútil!

Se permanecermos no habitat natural da Teoria Queer, o mundo dos trabalhos acadêmicos, esse debate parece uma emoção intelectual em que se passa citações filosóficas de um lado para outro. No entanto, como escrevemos no início, as premissas filosóficas também levam a certas conclusões práticas.

A onipresença do poder na Teoria Queer significa que nunca podemos escapar dele, que toda resistência é apenas uma expressão do próprio poder e, em última análise, serve à estabilidade. Daí a citação relativamente conhecida de Foucault de que a resistência “nunca está em uma posição de exterioridade em relação ao poder” e que, portanto, só existem resistências “possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, combinadas, desenfreadas ou violentas … rápidas em se conciliarem, interessadas ou sacrificiais.” (Michel Foucault: The History of Sexuality, p. 95-6.)

“As recentes percepções e práticas em torno do “queer” questionam a crença na possibilidade de mudança social a longo prazo ou emancipação em geral” (Annamarie Jagose: Queer Theory, p. 61.)

Esse pessimismo absoluto em relação aos movimentos sociais, a crença de que qualquer resistência está automaticamente condenada, mostra quão pouco esses filósofos entenderam dos movimentos revolucionários das décadas de 1960 e 1970 e as razões de seu fracasso. Eles refletem a desesperança do impasse feminista, da pequena burguesia que não confia na classe trabalhadora (se é que eles acreditam que ela existe). Em vez de compreender e criticar o papel da liderança das organizações de massa, eles procuram novas formas de “resistência” sem uma ideia clara contra quem ou o que essa resistência deve ser dirigida e quais métodos devem ser usados. A possibilidade de uma derrubada do sistema governante parece inviável e impossível.

Como consequência, a Teoria Queer sugere uma prática que faz até o reformismo mais brando parecer radical. Ele recua completamente no campo da cultura e da linguagem. Deveria haver novos “termos” para identidade, uma “nova gramática” desenvolvida ou uma “nova ética” elaborada (Gayle Rubins). Por exemplo, a fim de “expor” a ilusão dos sexos, Butler sugere parodiar as identidades de gênero por meio de “práticas culturais de drag, travesti e estilização sexual de identidades butch / femme.” (GT, p. 137.) Essa é a única sugestão prática em todo o livro Problemas de gênero! E Nancy Fraser, aliviada, explica:

“A boa notícia é que não precisamos derrubar o capitalismo para remediar [a desvantagem econômica dos gays] – embora possamos precisar derrubá-lo por outros motivos. A má notícia é que precisamos transformar a ordem de status existente e reestruturar as relações de reconhecimento.” (Nancy Fraser: Heterosexism, Misrecognition, and Capitalism, p. 285.)

Leia: precisamos melhorar a imagem da homossexualidade. Aqui, Fraser, que é comparativamente mais inclinada para a prática, exibe abertamente seu reformismo: felizmente ela não precisa derrubar o capitalismo! Ela só precisa mudar a forma como a sociedade vê a homossexualidade! Não é de se admirar que a Teoria Queer tenha sido voluntariamente adotada por alguns reformistas dentro das organizações dos trabalhadores a fim de fugir da responsabilidade de liderar uma luta real contra a discriminação com greves, protestos de massa, em suma, métodos da luta de classes e, em vez disso, focar nas demandas por reformas linguísticas, cotas, espaços culturais livres e faixas de pedestres coloridas.

Ao omitir a questão de classe, a Teoria Queer não é apenas uma ferramenta útil nas mãos dos burocratas dentro das organizações dos trabalhadores, ela também serve como uma justificativa ideológica para uma seção da burguesia e das forças capitalistas se apresentarem como amigos dos LGBT e pintar uma imagem liberal e progressista de si mesmos. Corporações como a Apple ou a Coca-Cola, que exploram dezenas de milhares de pessoas em péssimas condições de trabalho, apóiam campanhas LGBT em suas empresas ou financiam caminhões de festa que distribuem bebidas alcoólicas gratuitamente nas paradas do Orgulho comercializadas. A fim de financiar a produção de ideias aparentemente radicais, mas na verdade (para a classe dominante) completamente inofensivas, milhares de euros são gastos em cátedras de estudos de gênero, departamentos e bolsas de estudo queer, enquanto a mídia liberal de esquerda e as editoras publicam artigos benevolentes e romances.

Muitos ativistas queer estão cientes destas tendências e são claramente contra a cooptação de sua resistência pelo sistema dominante. No entanto, a Teoria Queer não oferece as idéias necessárias para lutar contra essa usurpação pela classe dominante; pelo contrário, é parte da ideologia dominante que individualiza e camufla a exploração e a opressão, ao mesmo tempo que divide a luta unida contra o sistema, precisamente porque a luta unida é estranha à Teoria Queer.

Apesar de sua origem como uma crítica às políticas de identidade tradicionais dos anos 1970 e 1980, com sua mentalidade de círculo e lutas internas, ela falhou em superar justamente esse tipo de política de identidade. Uma vez que não podemos escapar da onipresença do poder na sociedade, também é impossível escapar das identidades, mesmo que sejam vistas como fictícias.

Uma vez que as identificações “são, dentro do campo de poder da sexualidade, inevitáveis” (GT, p. 40), e podemos, na melhor das hipóteses, “parodiar” essas identidades, a Teoria Queer, que começou como uma crítica da política de identidade, acaba exatamente onde tudo começou: com a política de identidade. Na prática, as velhas disputas de quem-pode-representar-quem continuam descaradamente, assim como nos círculos feministas radicais (e contra eles). Butler afirma com propriedade: “Obviamente, a tarefa política não é recusar a política representacional – como se pudéssemos.” (GT, p. 8.)

Qualquer forma de ação coletiva e luta unida de todos os oprimidos torna-se uma briga, uma vez que “unidade” e “representação” conduzem automaticamente à exclusão e opressão violenta: “a unidade só se adquire através da extinção violenta.” (Judith Butler: Merely Cultural, p. 44.) [título em português, Meramente Cultural]

Isso leva a uma individualização daqueles que se opõem ao sistema opressor sob o qual vivemos. Por exemplo, a feminista queer Franziska Haug reclama que “a identidade do indivíduo – origem, cultura, gênero etc. – torna-se o cerne da questão” em debates feministas queer, e “o direito de falar e lutar está sendo decidido dependendo da identidade do falante”. Há uma competição sobre quem é o mais oprimido e, portanto, tem o direito de falar, e quem não pode ser contestado. Contra-argumentos indesejáveis, muitas vezes ouvimos acusações do tipo “você, sendo um homem branco / mulher cis / trans branco não tem o direito de discordar de mim ou de revogar meu ponto de vista subjetivo.” (Franziska Haug: Queerfeministische Solidarität zwischen Kollektivität und Identität, p. 236.)

Enquanto se tenta não excluir ninguém por meio de “generalizações violentas”, um número incontável de identidades são criadas que supostamente cobrem todas as combinações imagináveis ​​de preferências sexuais, românticas, de gênero e outras e que estão sendo administradas em uma série de grupos queer. Em vez de uma luta unida de todos os que querem lutar contra o sistema, essa lógica muitas vezes leva a assédio moral e exclusão dentro de diferentes grupos. Uma feminista queer dá um relato vívido disso em seu artigo, “Solidariedade Feminista a partir da Teoria Queer”, que quase parece o conteúdo desesperado e íntimo de um diário:

“Apesar dos meus escrúpulos sobre o termo bissexual, este descritor fornece uma espécie de lar para mim, quando em qualquer outro lugar parece pior. Ambos os espaços heterossexuais e lésbicos têm seus próprios confortos para as mulheres, e muitas vezes fui excluída de ambos. Também me disseram que precisava mudar para caber nesses espaços – aceitando minha verdadeira hetero ou homossexualidade – e tenho sentido os momentos da verdade, bem como, algumas vezes, a hipocrisia e complacência dessas exigências … É ao mesmo tempo necessário e perturbador buscar um lar como um ser de gênero ou sexual: necessário porque a comunidade, o reconhecimento e a estabilidade são essenciais para o florescimento humano e a resistência política, e preocupante porque essas mesmas práticas muitas vezes se congelam em ideologias políticas e formações de grupo que são exclusivos ou hegemônicos.” (Cressida J. Heyes: Feminist Solidarity after Queer Theory: The Case of Transgender, p. 1097.)

A partir dessas linhas, podemos sentir a miséria criada pelas pressões e opressão do capitalismo e o que eles fazem à nossa psique e auto-estima. Mas elas também mostram o impasse da política de identidade. Mesmo que o texto se proponha a tarefa de encontrar uma forma de solidariedade entre todas as feministas, ele não consegue imaginar uma unidade que não seja baseada na identidade. Na prática, a política identitária leva a uma cisão no movimento. Por exemplo, em Viena houve duas marchas separadas no dia da mulher em 8 de março durante anos: uma das feministas radicais (que só pode ter a participação de mulheres e, em um bloco, de pessoas LGBT), e uma de ativistas queer (onde a princípio nenhum homem cis, mas desde 2019, todos os que se consideram feministas podem comparecer). Uma manifestação unida foi repetidamente recusada por ambos os lados. No contexto da ascensão dos movimentos de massa em torno das demandas pelos direitos das mulheres em todo o mundo, e o potencial latente na Áustria sob um governo de direita, este exemplo revela o papel divisivo da política identitária.

É natural que muitas pessoas, em particular os jovens, questionem as normas estabelecidas na sociedade, como a sexualidade e os papéis de gênero. Sempre foi assim e, como marxistas, defendemos o direito de todas as pessoas de se expressarem e se identificarem como quiserem. Mas o problema surge aqui quando a experiência pessoal dos indivíduos é teorizada, elevada ao nível de um princípio filosófico e generalizada para toda a sociedade e a natureza. Os teóricos queer nos dizem que ser queer ou não-binário é progressivo e até revolucionário, em oposição a ser binário (ou seja, homem ou mulher, o que é a maioria da humanidade), que é considerado reacionário. Aqui, porém, é a Teoria Queer que mostra seu lado reacionário. Apesar de todo o seu discurso radical contra a opressão, ela se opõe a uma luta de classes unida e promove a atomização dos indivíduos com base nas preferências sexuais e pessoais, dividindo a classe trabalhadora em entidades cada vez menores. Enquanto isso, todo o edifício podre de exploração e opressão do capitalismo permanece no lugar.


1 “Heterossexualidade compulsória” é um termo freqüentemente usado na Teoria Queer. Cunhado em 1980, argumenta que a heterossexualidade é uma orientação socialmente construída, semelhante ao racismo.

2 “Para muitos de nós, jovens intelectuais, o interesse por Nietzsche ou Bataille não representava uma forma de se distanciar do marxismo ou do comunismo. Em vez disso, era quase o único caminho que conduzia ao que nós, é claro, pensávamos que se poderia esperar do comunismo … Assim, sem conhecer Marx muito bem, recusando o hegelianismo e me sentindo insatisfeito com as limitações do existencialismo, decidi aderir ao Partido Comunista Francês.” Michel Foucault (1981): Remarks on Marx. Conversations with Duccio Trombadori, Semiotext(e), pp. 50-51.

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