Madagascar: Exército se divide e presidente foge – o movimento de massas conquistou sua primeira vitória Share TweetOs acontecimentos se desenvolveram em velocidade vertiginosa durante o fim de semana em Madagascar. O movimento juvenil de massa, iniciado em 25 de setembro, derrubou o antigo regime. Uma parte do exército se recusou a continuar a repressão contra as massas e se amotinou. O presidente teve que ser levado de avião pelos militares franceses no domingo, 12 de outubro.A centelha que desencadeou o movimento foram os constantes cortes de energia, que tornam a vida cotidiana intolerável. Mas esse foi apenas o sintoma mais marcante de um profundo mal-estar contra a corrupção: o contraste obsceno entre a riqueza dos que estão no topo (incluindo empresários proeminentes próximos ao presidente) e as péssimas condições das massas em uma ilha onde 79% vivem abaixo da linha da pobreza.Do protesto à revoltaO que começou como um movimento pacífico de protesto da juventude estudantil, em parte inspirado pelas revoluções da Geração Z na Indonésia e no Nepal, tornou-se uma revolta nacional depois que o regime do presidente Rajoelina lançou uma repressão brutal contra os manifestantes, deixando pelo menos 25 mortos. Como a repressão não intimidou a juventude, o regime tentou fazer concessões, demitindo o governo e nomeando um novo primeiro-ministro. Era tarde demais. O objetivo do movimento havia se tornado a derrubada de todo o regime sanguinário.Um teste de força entre as massas e o regime ocorreu em 30 de setembro, quando os jovens conseguiram romper as barreiras policiais na capital e chegar à praça central 13 de Maio. O regime ficou suspenso no ar, mas recorreu novamente à repressão nos dias seguintes.Os confrontos entre os estudantes e as forças odiadas da gendarmeria se intensificaram. O movimento GenZ Madagascar convocou uma greve geral e setores do movimento sindical organizado começaram a aderir. Isso incluía médicos em formação, que apresentaram suas próprias reivindicações sobre as condições de trabalho, funcionários públicos, os trabalhadores da empresa de água e eletricidade JIRAMA e também os diretores de prisões, que anunciaram que se recusariam a deter mais manifestantes presos.Foi a crescente pressão do movimento de massas frente a teimosia do presidente em permanecer no poder, mesmo tentando nomear um novo primeiro-ministro, que finalmente provocou uma fissura no exército.Deserções no ExércitoEm 2 de outubro, houve rumores de confrontos dentro de alguns quartéis militares, à medida que se desenvolvia um clima de rebelião. Bombas de gás lacrimogêneo foram utilizadas. Foi uma situação bastante confusa, que aparentemente levou à prisão de dez soldados da unidade CAPSAT, o Corpo de Administração de Pessoal e Serviços do Exército, com sede em Soanierana, perto da capital.Em 10 de outubro, na cidade de Antsiranana, no norte do país, um dos locais onde o movimento foi mais forte, soldados do exército, em vez de bloquear a passagem dos manifestantes, abriram caminho e os escoltaram até o centro da cidade. Isso enviou uma mensagem muito clara, desafiando abertamente as ordens do presidente.O presidente Rajoelina, agora suspenso no ar, fez uma série de promessas, incluindo geradores de energia para as universidades. Ele pediu uma trégua de um ano, na qual se comprometeu a resolver os problemas levantados pelo movimento. Era claramente tarde demais. As massas não estavam mais dispostas a ceder. Queriam a saída de todo o regime.Em 11 de outubro, a barragem finalmente se rompeu. Soldados da CAPSAT, liderados por seus comandantes, anunciaram publicamente que não seriam mais usados para reprimir os protestos – um ato de flagrante insubordinação.“Nossos filhos estão sofrendo, não estamos aqui para matá-los e espancá-los. Estamos vivenciando o mesmo sofrimento. Devemos apoiá-los. Não nos deixemos manipular por dinheiro ou posição.”Sua declaração revela duas questões muito significativas: os soldados são oriundos de famílias da classe trabalhadora e chegaram a um ponto em que se recusaram a ser usados contra seus irmãos e irmãs (e filhos). Eles também estão submetidos às mesmas condições que afetam os trabalhadores em geral (pobreza, cortes de energia, etc.).Em sua declaração, a CAPSAT fez um apelo a outras unidades do exército, bem como à polícia e à gendarmeria, para que seguissem seu exemplo. Convocaram a população a se unir na defesa de seus quartéis, apelaram à guarda presidencial para que desobedecesse às ordens e fizeram um apelo para que se bloqueasse a estrada para o aeroporto de Antananarivo, caso o presidente tentasse fugir. Foi um apelo total por uma insurreição geral.O presidente Rajoelina respondeu com uma declaração alertando que um golpe de Estado estava em andamento, mas que não havia nada que ele pudesse fazer.No mesmo dia, soldados da CAPSAT, após terem assegurado suas instalações, saíram de armas nas mãos e conduziram os manifestantes em direção à Praça 13 de Maio. O caminho para a praça estava bloqueado por soldados armados da gendarmeria, o que resultou em uma breve troca de tiros. O exército era muito superior e os oficiais da gendarmeria foram vistos fugindo. Um soldado da CAPSAT, Fanomezantsoa Stephano Jacky, e dois civis, Safidy e Rivoniandry Riva Rakotomalala, foram mortos durante o tiroteio. Mesmo assim, as massas, acompanhadas e protegidas pelos soldados rebeldes, entraram na praça. Foi o começo do fim para o regime.Nas horas seguintes, a unidade da CAPSAT agiu rapidamente para consolidar sua posição. Uma reunião com os comandantes da gendarmeria garantiu sua neutralidade e o fim dos confrontos. Pelo menos uma unidade da gendarmeria também passou para o lado do povo. A Força Nacional de Intervenção da Gendarmeria (FIGN), responsável pela proteção presidencial, fez uma declaração pública pedindo desculpas às massas pelo uso da repressão e anunciando que toda a gendarmeria deveria ser colocada sob seu controle.Então, veio o desafio final, quando, na madrugada de domingo, 12 de outubro, os oficiais da CAPSAT declararam que todas as unidades militares e policiais deveriam obedecer às suas ordens. Eles nomearam um novo chefe das Forças Armadas, o General Démosthène Pikulas, comandante da CAPSAT. A gendarmeria foi então colocada sob o comando do General de Brigada Mamelison Mbina Nonos, da FIGN. As unidades rebeldes do exército estavam agora no controle das Forças Armadas.Na segunda-feira, o Senado se reuniu e destituiu seu presidente, o odiado General "Bomba" (Richard Ravalomanana), visto como o mentor da repressão brutal ao movimento. Foi uma conclusão inevitável. O poder não estava mais nas mãos das instituições, mas sim nas mãos do exército rebelde e das massas nas ruas.Presidente Rajoelina foge!Restava saber o que o Presidente Rajoelina faria. Havia rumores de que ele já havia fugido do país, mas na segunda-feira, 12 de outubro, um anúncio em sua conta oficial do Facebook informava que ele discursaria ao país naquela noite. Foi uma manobra de distração, pois foi revelado que ele já havia sido retirado do país no dia anterior por um avião militar francês, primeiro para La Réunion e depois possivelmente para Dubai. A antiga potência colonial ainda exerce enorme influência na política e na economia da ilha.O primeiro-ministro deposto, Christian Ntsay, e o empresário Mamy Ravatomanga, um aliado próximo do presidente, já haviam deixado a ilha, em um jato particular, para as Ilhas Maurício.O que vem a seguir? Antes de mais nada, devemos dizer claramente que a derrubada de Rajoelina é uma vitória para o movimento da Geração Z de Madagascar. Foi a luta corajosa e implacável da juventude, que se espalhou amplamente para setores da classe trabalhadora e da população em geral, que finalmente o forçou a sair. O exército nunca teria rompido as fileiras se não fosse pela luta incansável das massas de jovens que, por quase três semanas, permaneceram nas ruas e intensificaram suas ações diante da repressão sangrenta.A coragem, a resiliência e a firmeza das massas malgaxes diante da repressão brutal e com pouquíssima organização prévia são um exemplo e uma inspiração para as massas de trabalhadores e jovens em todo o continente e no mundo.Como a rebelião do exército pode ser explicada? Por um lado, é claramente o resultado do impacto da mobilização em massa na consciência dos soldados rasos e oficiais de patente inferior, que vêm de famílias da classe trabalhadora e cujas condições de vida são próximas às da classe trabalhadora. Toda revolução genuína produz tais divisões no aparato estatal sob linhas de classe.Há, no entanto, outro fator. Alguns dos comandantes, que já haviam participado de uma rebelião semelhante em 2009, durante um movimento de massas anterior, foram movidos por considerações diferentes. Eles viam o regime em queda acelerada e não queriam ser arrastados junto com ele. Acreditavam que uma rápida rebelião do exército garantiria que toda a instituição permanecesse intacta e pudesse desempenhar um papel na transição de poder após a remoção de Rajoelina. O que realmente os motiva é o seu próprio destino e a necessidade de garantir a passagem institucional à burguesia.O que vem a seguir para a Geração Z de Madagascar?As massas, é claro, estão exultantes e receberam os soldados da CAPSAT como heróis. Mas devem permanecer vigilantes e não confiar nos comandantes que só mudaram de lado no último minuto, motivados pela própria autopreservação.Já na segunda-feira, alguns na praça comentavam que todos os tipos de figuras políticas e públicas estavam discursando no palco, apesar de não terem desempenhado nenhum papel na luta. Em vez disso, agora tentavam se posicionar para se tornarem beneficiários dela."Estou frustrado e um pouco decepcionado com o que está acontecendo agora", disse um manifestante à agência de notícias francesa RFI. “Tenho a impressão de que os jovens fizeram todo o trabalho e agora são os mais velhos que estão lá dando show, como sempre. Afinal, é uma questão política, então os jovens não necessariamente se envolveram em política. Mas o que está acontecendo agora é um pouco decepcionante. Parece um pouco uma cooptação política. Gostaríamos de colocar alguém no poder, não a alguém que está lá há muito tempo ou a quem lhe resulte mais fácil tomar o seu lugar. Nossa luta está longe de terminar.”O movimento da Geração Z de Madagascar deu passos largos e se tornou muito mais organizado ao longo das duas semanas de luta. Comitês Distritais de Coordenação da Luta (KMT) foram criados e, em alguns bairros da capital, patrulhas embrionárias de vigilância contra saques foram criadas. No entanto, o movimento provavelmente não está organizado o suficiente para suportar a enorme pressão por um retorno à política burguesa "normal".Como em Bangladesh no ano passado e no Nepal há algumas semanas, agora haverá uma enorme pressão pela formação de um novo governo provisório, provavelmente liderado por alguma figura "independente" que não esteja manchada ou desacreditada como todos os políticos burgueses.Para dar-lhe uma aparência de legitimidade e apaziguar a juventude estudantil, é até possível que o movimento seja consultado sobre a escolha do presidente. Talvez até mesmo alguns de suas próprias fileiras sejam incluídos. Os novos chefes das forças armadas, das unidades rebeldes, garantirão todo o processo. Foi mais ou menos isso que aconteceu após o movimento de massas de 2009, num processo que culminou na ascensão de uma "figura jovem" "de fora da política". O nome dele? Presidente Rajoelina.No entanto, a questão principal permanece. Nenhum dos problemas agudos que as massas enfrentam pode ser resolvido sem desafiar o sistema capitalista como um todo. O problema não é simplesmente a corrupção. A corrupção é um sintoma da podridão do sistema capitalista em um país atrasado dominado pelo imperialismo. O movimento levantou a demanda pela expropriação das propriedades de Mamy Ravatomanga, um dos capitalistas mais ricos do país. Não é apenas ele, mas todos os capitalistas que devem ser expropriados.Se as massas malgaxes tivessem uma liderança revolucionária munida de um programa claro para derrubar o capitalismo, poderiam agora estar comemorando uma vitória completa da revolução. Sem isso, provavelmente terão que passar pela mesma experiência que as massas no Sri Lanka, Bangladesh, Nepal, etc.As palavras de ordem do dia são: Nenhuma confiança nos políticos burgueses, figuras públicas e generais do exército – as massas de jovens e trabalhadores devem confiar apenas em suas próprias forças. Nenhuma transição ditada a partir de cima para outro governo capitalista para que nada mude – mas todo o poder para os trabalhadores organizados em comitês democráticos de luta. Pelo controle dos trabalhadores sobre as empresas públicas (principalmente a JIRAMA) e pelo cancelamento e reversão de todas as medidas de privatização. Expropriação dos ganhos ilícitos de Rajoelina, Ravatomanga e sua comitiva. Fora o imperialismo francês. Por um governo dos trabalhadores que assuma o controle dos recursos da ilha para que possam ser usados democraticamente para satisfazer as necessidades da maioria.