Argentina evita calote do FMI por pouco, mas explosão social está na ordem do dia

O recente acordo entre o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Argentina, aprovado em meio a protestos em massa, evita por meio do adiamento o que de outra forma seria um calote iminente de seu empréstimo de 2018. As condicionalidades do acordo significarão um programa de austeridade severo e uma maior sujeição do país ao FMI por meio de inspeções trimestrais. Na realidade, é pouco provável que as duas partes alcancem seus declarados objetivos. A aprovação do acordo do FMI abriu brechas profundas dentro da coalizão governante Frente de Todos e está exercendo uma forte pressão em direção à unidade nacional no topo para evitar uma explosão social na base.

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A razão imediata para o acordo FMI-Argentina é o fato de que o país não conseguiu pagar uma parcela de US$ 2,8 bilhões do empréstimo stand-by de 2018. Em 2018, o governo argentino do presidente de direita Macri tomou emprestado um recorde de US$ 57 bilhões do FMI. Macri então embarcou em toda uma série de contrarreformas (direitos trabalhistas, previdenciário etc.), que provocaram um movimento de protesto massivo, e ele finalmente foi incapaz de implementá-las plenamente.

Adiamento

Naquela momento, uma explosão social e a derrubada do governo por um movimento de massa nas ruas (como havia acontecido no Argentinazo de 2001) estava em jogo. Só foi evitado porque os líderes sindicais e o kirchnerismo (o movimento político peronista de “esquerda” liderado por Cristina Fernandez, viúva do ex-presidente Nestor Kirchner) conseguiram canalizar a raiva popular para os canais eleitorais, terminando na vitória da Frente de Todos kirchnerista e na eleição de Alberto Fernandez como presidente em 2019. Grande parte do empréstimo do FMI de 2018 acabou nas mãos dos capitalistas, que então passaram a desviar o dinheiro ao exterior, grande parte dele para contas obscuras em paraísos fiscais.

Esse empréstimo, que foi contratado por um governo de direita e do qual apenas os capitalistas se beneficiaram, agora pesa como uma mó no pescoço da economia argentina. O governo de Alberto Fernández é uma aliança incômoda entre o próprio presidente, representante da ala burguesa mais “respeitável” dos peronistas, e a vice-presidente Cristina Kirchner, representante da ala kirchnerista mais à “esquerda” do movimento. Ambos trabalharam para manter a estabilidade da fraca e em crise economia capitalista argentina, inclusive pagando obedientemente a dívida ao FMI.

Até que, naturalmente, isso se tornou completamente impossível. De acordo com alguns cálculos, as reservas líquidas do banco central tornaram-se negativas, depois de pagar mais de US$ 1 bilhão ao FMI em janeiro. A perspectiva diante do FMI e do governo argentino era a de um calote muito custoso. Custoso para o FMI pelo valor que perderia, mas também do ponto de vista de abrir um precedente para outros países. Custoso do ponto de vista do governo argentino, pois o cortaria dos credores internacionais em um momento de profunda crise econômica. Era preciso chegar a um acordo.

Esse acordo, que vem após dois anos de negociações, reestrutura US$ 44 bilhões em dívidas, permitindo que a Argentina tenha acesso a novos financiamentos, incluindo um primeiro desembolso de US$ 9,7 bilhões. No entanto, o programa vem com condicionalidades estritas e é baseado em um conjunto de previsões e prognósticos que nem mesmo os próprios representantes do FMI acreditam que podem ser cumpridos. Em primeiro lugar, o programa será submetido a inspeções trimestrais, o que significa que o FMI acompanhará de perto as políticas do governo argentino. A ameaça de inadimplência ficará permanentemente pendurada como a espada de Dâmocles.

Entre os termos acordados está uma redução progressiva do déficit orçamentário de 3%, em 2021, para 0,9% em 2024 e um orçamento equilibrado em 2025. Isso significa um ajuste fiscal brutal, cujo peso recairá sobre a classe trabalhadora e os pobres. Isso será feito principalmente por meio de cortes nos subsídios aos preços do gás e da eletricidade aos consumidores domésticos. Ou seja, os trabalhadores argentinos verão suas contas subirem US$ 3,8 bilhões (1% do PIB) para financiar o pagamento da dívida ao FMI. Ao mesmo tempo, o acordo impede o governo de imprimir dinheiro para financiar o déficit na tentativa de combater a inflação. As metas para a inflação também são totalmente irrealistas, de 52% atualmente para 38% a 48% até o final do ano. Isso em um momento em que, além das pressões inflacionárias anteriormente existentes, a Argentina foi atingida pelo impacto da guerra na Ucrânia em termos de preços mundiais, principalmente no setor de energia. Na realidade, os economistas argentinos preveem que a inflação chegue a 60%!

Austeridade brutal

Ninguém acredita que os objetivos do acordo possam ser alcançados. As medidas propostas significarão um ataque às condições de vida da classe trabalhadora, que verá contas mais altas e inflação consumindo os salários. O acordo terá um impacto depressivo em uma economia já combalida. Com taxas de juros mais altas e salários reais mais baixos, os capitalistas continuarão tirando seu dinheiro do país em vez de investir nele.

Ignacio Labaqui, analista da Medley Global Advisors, citado no Financial Times, descreveu o acordo como uma ponte para as eleições de 2023: “O FMI aparentemente prefere ver se o próximo governo está mais disposto a implementar as reformas”.

A própria diretora do FMI, Georgieva, comentou que: “A Argentina continua a enfrentar desafios econômicos e sociais excepcionais, incluindo renda per capita deprimida, níveis elevados de pobreza, inflação alta persistente, pesado fardo da dívida e baixos amortecedores externos”. Ela alertou que “os riscos para o programa são excepcionalmente altos e as repercussões da guerra na Ucrânia já estão se materializando” e que “neste contexto, a recalibração precoce do programa … será fundamental”. Essa é uma maneira diplomática de dizer que vai fracassar. Na verdade, todos sabem que a Argentina entrará em default mais cedo ou mais tarde. O acordo apenas adia a data.

A assinatura do acordo também abriu sérias divergências dentro do partido governante Frente de Todos (FdT), entre o presidente Alberto Fernández e os kirchneristas liderados pela vice-presidente Cristina Fernández. Já em fevereiro, Maximo Kirchner renunciou ao cargo de chefe do grupo parlamentar da FdT em protesto, embora permaneça como membro do parlamento. O acordo real só foi aprovado com os votos da oposição de direita Juntos por el Cambio (JxC), pois um grupo considerável de parlamentares do FdT se absteve (13) ou votou contra (28), num total de 41 dos 117 parlamentares do partido.

É claro que essas manifestações públicas de oposição foram principalmente demonstrativas, pois o número de abstenções e votos contra foi cuidadosamente calibrado para garantir que o acordo fosse aprovado com a maioria necessária (contando com o apoio da oposição). A ideia era fazer um gesto para o eleitorado kirchnerista, que se opõe profundamente a qualquer acordo com o FMI, e não para impedir de fato a assinatura do acordo. Os kirchneristas ainda fazem parte do governo de Alberto Fernández e não estão dispostos a abandonar nenhum dos principais ministérios que exercem.

Dias após a assinatura do acordo com o FMI, os kirchneristas propuseram uma lei para cobrar um pagamento de 20% a quem retirar dinheiro do país e não o declarar à receita do Estado, a ser pago em dólares. Calcula-se que o montante total desviado do país para evitar impostos é de impressionantes US$ 400 bilhões. No entanto, esse é principalmente um movimento de propaganda, para dizer a seus eleitores que eles querem que os ricos e os sonegadores paguem o empréstimo do FMI. Na prática, esta lei, se aprovada, terá pouco impacto. O dinheiro evadido de impostos, por definição, é mantido com segurança fora do alcance das autoridades e assim permanecerá.

Explosão social sendo preparada

No entanto, a assinatura do acordo revelou fortes tendências à unidade nacional, com parlamentares da oposição votando a favor e dando ao governo os votos necessários para aprová-lo. Isso é bastante significativo em um momento em que todos os partidos estão pensando nas próximas eleições em 2023. É claro que havia setores do JxC que estavam considerando votar contra para derrubar o governo, mas a classe dominante os disciplinou. Prevenir um calote e mais turbulências políticas em um momento de profunda crise social era primordial do ponto de vista da classe dominante. Diante da ameaça de uma explosão social vinda de baixo, a classe capitalista está pressionando pela unidade de seus representantes políticos em ambos os campos, governo e oposição. A própria Diretora do FMI salientou este ponto: “Um forte consenso político e social é a chave para sustentar a implementação da agenda de reformas”. Assim, a assinatura do acordo com uma grande maioria parlamentar não é um sinal de força, mas sim de fraqueza.

Então, finalmente, o acordo foi aprovado, apesar de uma série de protestos em massa nas ruas desde dezembro e da brutal repressão policial, que incluiu o ataque a trabalhadores e organizações populares, a prisão de conhecidos ativistas de esquerda etc.

Na realidade, o que está sendo preparado na Argentina é uma enorme explosão social. As eleições de 2019 funcionaram como uma válvula de escape para evitar uma revolta na época, como as do Equador e do Chile. A raiva das massas, ao não ser oferecida nenhuma alternativa real pelos líderes sindicais burocráticos, foi canalizada para as eleições. Havia uma tênue esperança de que, com o retorno dos peronistas ao poder, haveria de alguma forma uma repetição do crescimento econômico dos anos Kirchner. Isso era uma ilusão, o ciclo de preços altos das matérias-primas que sustentava esse crescimento havia terminado.

E, então, a pandemia chegou, lançando a economia argentina em queda livre e provocando um aumento acentuado da pobreza, de um mínimo de 25%, em 2018, depois um aumento para 35%, em 2019, e um pico de 43%, em 2020. Esses números não diminuíram substancialmente e, apesar do crescimento econômico nominal, a taxa oficial de pobreza permanece em impressionantes 40%.

Estas são as condições que preparam uma explosão social massiva. O fantasma do Argentinazo assombra a classe dominante. Os dirigentes sindicais burocráticos da CGT e do CTA, assim como os dirigentes do kirchnerismo, estão a fazer o seu melhor para o impedir que isso aconteça. Mas todos os sinais estão lá, e já houve algumas explosões regionais e locais. O problema é que, quanto mais tempo as organizações oficiais do movimento operário conseguirem controlar a situação, mais violenta será a explosão quando finalmente ocorrer.

Infelizmente, os representantes oficiais da esquerda na coalizão eleitoral da FITU, parecem estar focados em uma estratégia de lenta acumulação de forças na frente eleitoral, quando o que é necessário é uma política revolucionária ousada que coloque a questão da crise do capitalismo ao nível do centro da luta política. Ao invés de ganhar mais alguns votos e mais um ou dois deputados, o que se deve colocar é a necessidade de uma alternativa socialista clara e um plano de luta para derrubar o acordo do FMI, e, com ele, os partidos políticos que o apóiam, tanto no governo quanto na oposição. A única alternativa à crise do capitalismo argentino é que os trabalhadores tomem as rédeas do país, expulsem o imperialismo e expropriem os capitalistas.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EMMARXIST.COM