A segunda “onda progressista” da América Latina: primeiro como tragédia, depois como farsa

A eleição de Lula no Brasil e de Petro na Colômbia em 2022 aumentou o ruído na mídia e nos círculos de esquerda sobre uma segunda “maré rosa” na América Latina. Esta é uma referência à onda de governos ditos “progressistas’ que governaram por vários anos em vários países do continente entre 1998-2015. Talvez seja mais apropriado descrever esses governos como uma maré “rosa”, pois certamente estão longe de ser “vermelhos” socialistas. É preciso examinar o caráter dessa primeira onda, os motivos que permitiram que ela durasse tanto, porque chegou ao fim e as diferentes condições enfrentadas por esta nova onda.

É verdade que governos descritos pela mídia burguesa como sendo, de uma forma ou de outra, de centro-esquerda foram eleitos na Argentina (2019), Brasil (2022), Chile (2021), Colômbia (2022) e México (2018). Estes são os cinco maiores países da América Latina. A eles poderíamos acrescentar o curto governo de Pedro Castillo no Peru (a sexta maior nação), o governo da Bolívia (2020) e de Honduras (2021).

Esta é uma grande reviravolta em relação aos governos abertamente de direita de Macri (Argentina), Bolsonaro (Brasil), Peña Nieto (México), Piñera (Chile) e os governos golpistas de Honduras e Bolívia. Estes são também os principais países que constituem o “Grupo de Lima”, uma organização ad hoc criada em 2017 para realizar a mudança de regime na Venezuela em nome do imperialismo norte americano.

Superficialmente, isso parece uma matriz bastante poderosa. Alguns, como Jacobin, em seu entusiasmo por esses governos, chegaram a dizer que essa nova onda será mais forte que a primeira. No entanto, como explicaremos, muitos desses governos não são de esquerda; vários incluem representantes abertos da classe dominante; e nenhum deles tem um programa claro para desafiar o capitalismo.

Mas antes de entrarmos nisso, vale a pena analisar o caráter da primeira onda de “governos progressistas” e as razões de sua queda.

A crise dos anos 1980

Durante a década de 1980, a América Latina viveu o que ficou conhecido como “a década perdida”. As causas imediatas da crise relacionam-se com a crise capitalista mundial do final dos anos 1970. A contração da economia mundial levou ao colapso dos preços do petróleo e de outras matérias-primas, atingindo as economias latino-americanas que exportavam essas commodities para o mercado mundial. Soma-se a isso o aumento das taxas de juros nos países capitalistas avançados para combater a inflação descontrolada que se desenvolveu durante a década de 1970. Isso encareceu muito os juros da dívida externa da América Latina.

Essa combinação de fatores produziu uma forte contração econômica no continente como um todo. O PIB estagnou em 1981 (cresceu 0,8%) e contraiu em 1982 (-0,3%) e 1983 (-1,9%). Em termos per capita, o PIB contraiu 9% entre 1980 e 1985. Em 1982, o México não pagou sua dívida externa, provocando uma crise generalizada da dívida no continente. Os credores estrangeiros não estavam preparados para renegociar e exigiram seu dinheiro de volta.

O único recurso que tiveram foi o FMI, que interveio exigindo a implementação de brutais pacotes de austeridade, cortes maciços nos gastos do governo e privatizações de ativos estatais, tudo em nome do pagamento da dívida externa. Dezenas de milhões de pessoas foram jogadas na pobreza enquanto os governos eram forçados a pagar bilhões de dólares aos credores imperialistas no exterior.

As consequências sociais e políticas da crise foram sentidas em todo o continente. Elas desempenharam um papel importante no fim das ditaduras militares no Chile, Argentina e Brasil, enfraqueceram seriamente o domínio do PRI no México e levaram a uma revolta popular massiva na Venezuela em 1989.

Esse foi o início do que ficou conhecido como “neoliberalismo”. Na realidade, essas eram políticas impostas pelo imperialismo e pelas oligarquias locais para fazer os trabalhadores pagarem pela crise do capitalismo. Isso foi agravado no início dos anos 1990 pelo processo conhecido como “globalização” – isto é, uma maior exploração do mercado mundial pelas potências imperialistas.

Os países latino-americanos foram forçados a “abrir” suas economias, o que significou uma maior penetração de multinacionais estrangeiras. Os chamados acordos de livre comércio promoveram, na prática, a dominação das economias desses países pelo imperialismo. As proteções comerciais foram derrubadas; o setor estatal foi privatizado e aberto ao investimento de multinacionais; todas as proteções trabalhistas e ambientais existentes foram abolidas; sistemas de pensões privados foram estabelecidos.

Os países que mais foram forçados a seguir esse caminho, talvez tenham sido o Chile (onde o processo foi iniciado com a intervenção dos ultra-monetaristas “Chicago Boys” sob o regime de Pinochet) e o Peru (particularmente durante a ditadura de Fujimori na década de 1990). As multinacionais espanholas desempenharam um papel fundamental neste processo, assumindo o setor bancário, as telecomunicações e o gás. Multinacionais de mineração da Grã-Bretanha, Canadá e Estados Unidos também se beneficiaram.

No final da década de 1990, o impacto total dessas políticas estava claro para todos verem. Houve um aumento maciço da pobreza e da pobreza extrema, a abertura de um enorme abismo de desigualdade na distribuição de renda e um domínio cada vez maior dessas nações pelo mercado capitalista mundial.

Levantes em massa

O palco estava montado para revoltas massivas de trabalhadores e camponeses, que rapidamente adquiriram características insurrecionais. Já em 1994 vimos o levante zapatista no México, com base nos camponeses pobres de Chiapas, mas com amplo apoio e simpatia em todo o país.

Estas eram as condições materiais, combinadas a escândalos de corrupção, que levaram a um descrédito maciço de todas as instituições burguesas e a uma apatia generalizada do eleitor. Segundo Latinbarómetro, apenas 25% da população do continente estava “satisfeita com a democracia” em 2001. Pela primeira vez, a proporção daqueles que acreditam que “a democracia é melhor do que qualquer outra forma de governo” caiu abaixo de 50% na região (48% em 2001).

O impacto da crise do Sudeste Asiático em 1998 finalmente desencadeou um processo de luta de massas e levantes em todo o continente. O PIB per capita caiu 1,3% em 2001 e mais 2,3% em 2002.

O século 21 começou na América Latina com a revolta em massa de trabalhadores e camponeses no Equador, que levou à derrubada do odiado governo de Mahuad. Já em 1997, eles haviam removido Bucaram do cargo quando, tendo quebrado suas promessas eleitorais, ele implementou um pacote de austeridade imposto pelo FMI. Durante esse levante, a questão do poder foi colocada. As massas, dirigidas pelas organizações indígenas e com o apoio dos sindicatos operários, instituíram uma Assembleia Popular e fecharam o parlamento burguês. Quando o governo tentou usar o exército, um setor deste foi conquistado para o lado das massas. Mas no momento crucial, quando as organizações de massa de trabalhadores e camponeses tinham o poder em suas mãos, seus líderes não seguiram adiante.

Desenvolvimentos semelhantes ocorreram na Bolívia, começando com a “guerra da água” em Cochabamba, em 1999-2000. Nessa luta vitoriosa, a massa de trabalhadores e camponeses desafiou as tentativas de privatização da água por meio de uma revolta local. Foi assim rompido um ciclo de derrotas e desmoralização, que se instalara após a derrota dos mineiros na década de 1980. Depois vieram as duas “guerras do gás” em fevereiro-outubro de 2003 e em maio-junho de 2005.

Estes foram movimentos verdadeiramente insurrecionais desencadeados em torno da demanda pela nacionalização do gás. A massa de trabalhadores e camponeses paralisou o país com bloqueios de estradas e uma poderosa greve geral. Os mineiros marcharam sobre a capital armados com dinamites. Os prédios do governo foram cercados. Mais uma vez, o poderoso sindicato da COB poderia ter tomado o poder, e até mesmo falaram sobre isso em suas próprias declarações. Eles falharam, no entanto, em levar a situação à sua conclusão lógica.

No final de 2001 assistimos a outra revolta, desta vez na Argentina, que ficou conhecida como Argentinazo. Espontaneamente, estimuladas pela crise econômica e pela corrida aos bancos, as massas saíram às ruas e desafiaram a ordem estabelecida. No espaço de algumas semanas, cinco governos surgiram e desapareceram, incapazes de controlar o poderoso movimento de massas. A questão do poder foi colocada, com as massas se organizando em Assembleias Populares e em um grande movimento piquetero dos trabalhadores desempregados.

Aqui, a revolta não foi tão longe quanto anteriormente no Equador e depois na Bolívia, mas havia potencial para um movimento revolucionário desafiar o poder da classe dominante. Infelizmente, as organizações que se dizem “trotskistas” na Argentina falharam em colocar claramente a questão do poder dos trabalhadores. Em vez disso, elas levantaram apenas palavras de ordem democráticas, como convocar uma Assembleia Constituinte, que claramente não eram aplicáveis a uma situação em que já havia uma democracia burguesa no país.

A essas insurreições devemos acrescentar também a de Arequipazo no Peru em 2002, uma greve geral massiva que derrotou a privatização da eletricidade em Arequipa; assim como a comuna de Oaxaca em 2006 e o movimento de massas contra a fraude eleitoral no México no mesmo ano.

Enfatizo a questão dessas revoltas porque o processo costuma ser apresentado apenas como a eleição de governos “progressistas” que passaram a realizar reformas. Na verdade, o que tivemos na época foi uma explosão de raiva acumulada contra as consequências sociais e econômicas das políticas ultraliberais (conhecidas como “neoliberalismo”) e as instituições desacreditadas da democracia burguesa. A massa de operários e camponeses tomou as rédeas da situação e colocou a questão do poder.

Foi o fracasso desses levantes em tomar o poder, dada a debilidade de suas lideranças, que permitiu o descarrilamento do movimento em direção ao campo eleitoral burguês, levando à eleição de Nestor Kirchner (Argentina, 2003), Evo Morales (Bolívia, 2005) e Rafael Correa (Equador, 2006), entre outros. Uma vez no poder, o papel desses governos foi o de restaurar a legitimidade das desacreditadas instituições democráticas burguesas, pondo fim ao movimento insurrecional das massas vindo de baixo e restaurando algum grau de equilíbrio.

No caso da Bolívia e do Equador, as Assembléias Constituintes desempenharam papéis decisivos nesse processo de restauração da legitimidade das instituições democráticas burguesas. Novas constituições foram redigidas, contendo muitas palavras bonitas e grandiosas, inclusive sobre o caráter “plurinacional” desses países. Apesar de todas as mudanças progressivas que foram implementadas – e as reformas são sempre o subproduto da revolução –, a propriedade capitalista permaneceu intacta, assim como a dominação imperialista e a opressão dos povos indígenas.

Venezuela

Os acontecimentos na Venezuela, é claro, fizeram parte do mesmo processo geral, mas seguiram linhas diferentes e tiveram algumas características específicas distintivas. A eleição de Hugo Chávez em 1998 não foi tanto o início de um processo quanto a consequência de mudanças na consciência das massas desde o levante do Caracazo de 1989, quando Carlos Andrés Pérez aplicou um pacote de austeridade imposto pelo FMI. Milhares foram mortos quando esta revolta espontânea de trabalhadores, jovens e pobres urbanos foi brutalmente reprimida pelo exército e pela polícia. Isso, por sua vez, levou a divisões dentro do exército e ao surgimento de um grupo de oficiais bolivarianos, liderados por Chávez, que se opôs à repressão e tentou por duas vezes provocar uma revolta cívico-militar em 1992.

Quando Chávez chegou ao poder em 1998, seu programa progressista estava limitado a acabar com a corrupção e usar a riqueza nacional do país (principalmente do petróleo) para realizar programas sociais a fim de beneficiar a maioria pobre. Nessa altura, sequer tinha um carácter explicitamente anti-imperialista. Isso viria mais tarde, em 2004.

No entanto, a tentativa de realmente colocar em prática esse limitado programa nacional democrático, particularmente a reforma agrária e o controle do governo sobre a indústria petrolífera estatal com as leis habilitantes de 2001, provocou a ira da oligarquia capitalista e do imperialismo. Eles decidiram remover o governo por meio de um golpe em 11 de abril de 2002.

Esse golpe foi derrotado pela irrupção das massas em cena, trazendo para o seu lado uma parte do exército. Pela primeira vez na história da América Latina, um golpe militar, organizado pela oligarquia capitalista e pelo imperialismo, foi derrotado pelas massas nas ruas. Isso aumentou enormemente a confiança das massas em sua própria força.

Através de uma série de golpes e contragolpes, e através da participação ativa das massas, a “Revolução Bolivariana”, como veio a ser conhecida, foi impulsionada para a esquerda, em uma direção cada vez mais anticapitalista. A experiência das massas em derrotar o bloqueio patronal e a sabotagem da economia, entre dezembro de 2002 e fevereiro de 2003, levou a um movimento de ocupação de fábricas. Uma relação dinâmica se desenvolveu entre Chávez e as massas: cada um empurrava o outro a ir mais longe.

Em maio de 2004, Chávez declarou o caráter anti-imperialista da revolução. Em janeiro de 2005, decretou a nacionalização da Venepal, fábrica de papel ocupada por seus trabalhadores. Outros seguiram o exemplo, e um movimento de controle dos trabalhadores se desenvolveu. Mais tarde naquele mesmo mês, ele declarou que o objetivo da revolução era o socialismo.

O movimento pelo controle operário não se limitou às fábricas privadas abandonadas por seus patrões e depois nacionalizadas, mas também se estendeu a algumas das principais estatais do país, como CADAFE, ALCASA e outras. Com o apoio do governo, uma primeira reunião latino-americana de trabalhadores de fábricas ocupadas foi realizada em Caracas em outubro de 2005. Em 2008, a gigante siderúrgica SIDOR foi renacionalizada e colocada sob uma forma de controle operário.

Enquanto isso, os camponeses ocupavam os grandes latifúndios com o apoio de Chávez. E em todo o país as massas vinham se organizando desde o início do seu governo.

Longe de restabelecer a legitimidade das instituições burguesas, esse processo caminhava na direção oposta, embora com muitas contradições: ou seja, estava fortalecendo a participação direta das massas na vida política e econômica do país. Chávez chegou a levantar a necessidade de se “pulverizar o Estado burguês”, mas isso nunca foi realmente posto em prática. Foi isso que colocou a Revolução Venezuelana em conflito com os chamados “governos progressistas” da América Latina.

O fim dos altos preços das commodities

A situação no Brasil também teve um caráter diferente. Aqui, tivemos a eleição de Lula em 2002, à frente do Partido dos Trabalhadores – organização que havia sido criada como expressão política da classe trabalhadora nos tempos revolucionários de luta contra a ditadura. Sua eleição refletiu o desejo da massa dos trabalhadores, dos camponeses sem terra e dos pobres urbanos e rurais em geral por uma mudança fundamental. Mas a essa altura, Lula e a liderança do PT já haviam abandonado sua reivindicação anterior de defender a independência de classe. Eles moderaram substancialmente seu programa e estavam preparados para trabalhar dentro do sistema. Desde o início, seu governo foi de unidade nacional e de colaboração de classe.

Mas, apesar das diferenças, todos esses governos se beneficiaram de um fator comum: um ciclo relativamente longo de alta de preços das matérias-primas, que durou quase uma década, terminando no crash das commodities a partir de 2014. Podem ser produzidos gráficos para o petróleo, gás natural, zinco, cobre, soja em grão etc., que são as principais commodities de exportação dos países sul-americanos, e todos mostram o mesmo quadro: forte alta de preço a partir de 2004-05, queda 2007-08 e, em seguida, uma forte recuperação que durou até 2014-15.

Tudo o que alguns economistas burgueses descreveram como um "superciclo de commodities” foi em grande parte impulsionado pela entrada da China no mercado mundial, dado o desenvolvimento de sua indústria acompanhado por um apetite insaciável por matérias-primas e fontes de energia. A última subida após a crise mundial de 2007 deveu-se às fortes medidas keynesianas de gastos estatais adotadas pela China no rescaldo dessa crise, que teve forte impacto na América do Sul. Em 2009, a China tornou-se o principal parceiro comercial de toda a região, desbancando os Estados Unidos.

Esse ciclo de alta dos preços das commodities foi a base para a estabilidade de todos esses governos “progressistas”. Deu-lhes certa margem de manobra para realizar certas reformas sociais sem ultrapassar os limites do capitalismo. O aumento dos padrões de vida e dos salários sustentou sua popularidade no cargo.

Com exceção da Venezuela, onde foram feitas incursões nos direitos de propriedade capitalista, todos esses governos permaneceram dentro dos limites do sistema. Embora alguns deles falassem sobre o socialismo, o que se queria dizer realmente era a social-democracia, ou melhor, o polimento das arestas do capitalismo, preservando intactas suas bases. O único que se manifestou abertamente contra o capitalismo foi Hugo Chávez. Mas, mesmo na Venezuela, o processo nunca foi concluído, fato  do qual o próprio Chávez se queixou amargamente pouco antes de sua morte.

Nenhum desses governos mudou fundamentalmente o caráter da acumulação de capital na região, baseada na exportação de produtos agrícolas, na pilhagem de recursos minerais e fontes de energia e na exploração de mão de obra barata sob o domínio esmagador do mercado mundial.

Havia então, como há agora, forte ênfase na ideia de uma “luta contra o neoliberalismo”, como se fosse possível gerir o capitalismo de forma a beneficiar também a massa de trabalhadores e camponeses e não apenas as ricas elites capitalistas e as multinacionais imperialistas. Nos médio e longo prazos, isso se mostrou impossível. Mas, por um período de tempo, parecia estar funcionando.

Todo tipo de ideias confusas foram apresentadas, como a ideia do “socialismo do século 21”, ou a ideia do vice-presidente da Bolívia, García Linera, do “capitalismo andino-amazônico” como uma etapa necessária de desenvolvimento antes que se pudesse propor a tarefa do socialismo.

Todas essas ilusões desabaram depois de 2014, quando a economia da China desacelerou drasticamente, pondo fim ao superciclo das commodities. Assim como a noite segue o dia, a ideia de que o capitalismo (ou “neoliberalismo”) pode ser domado revelou-se falida, e todos esses governos sofreram derrotas eleitorais ou foram substituídos de uma forma ou de outra.

Em novembro de 2015, o direitista Macri venceu a eleição na Argentina. Em dezembro de 2015, o PSUV de Maduro foi derrotado nas eleições para a Assembleia Nacional. Na Bolívia, Evo Morales perdeu o referendo constitucional em fevereiro de 2016. No Equador, Lenín Moreno, candidato presidencial de Correa, teve que ir a um segundo turno nas eleições presidenciais de 2017, e, logo depois, rompeu com seu mentor e alinhou-se abertamente ao imperialismo e à classe dominante. No Brasil, a candidata do PT, Dilma Rousseff, que venceu por pouco o segundo turno da eleição presidencial de 2014 ao desviar sua campanha para a esquerda, sofreu impeachment em 2016 em um processo iniciado por seu próprio vice-presidente burguês, Temer.

Na Venezuela, formalmente, o PSUV permaneceu no poder, com Maduro substituindo Chávez após sua morte em 2013. A Revolução Bolivariana conseguiu resistir a várias tentativas da contrarrevolução apoiada pelo imperialismo para derrubá-la. A revolução foi muito longe, tanto em termos de consciência das massas quanto em termos dos ganhos materiais que elas alcançaram. Porém, mesmo aqui, após a derrota eleitoral em dezembro de 2015, houve um claro processo de guinada à direita. A burocracia se entrincheirou no poder; as massas foram empurradas para trás; e lenta mas seguramente, os ganhos da revolução foram revertidos. O controle dos trabalhadores foi destruído. As terras expropriadas sob Chávez e entregues aos camponeses foram devolvidas aos latifundiários (antigos e novos). Empresas que haviam sido nacionalizadas foram reprivatizadas. Toda a ênfase estava em fazer as pazes com a classe dominante – mantendo o PSUV no poder.

Em 2018, o governo Maduro introduziu um pacote monetarista de medidas econômicas anti-classe trabalhadora, que fez os trabalhadores arcarem com o peso da crise econômica. Os acordos coletivos foram destruídos e, com eles, os direitos e condições adquiridos pelos trabalhadores. Ativistas sindicais e operários que se organizavam para resistir a essas medidas foram presos. Muito pouco restou do espírito revolucionário do chavismo, e a maior parte do que resta encontra-se na resistência ao governo.

A prematuramente prevista “morte da esquerda”

Isso levou muitos a cair em profundo pessimismo, argumentando que as massas na América Latina haviam “passado para a direita”, e foi declarado que uma nova “onda conservadora” havia começado, destinada a durar anos. Alguns chegaram a argumentar que o fascismo havia chegado ao poder no Brasil.

Em março de 2016, o político mexicano Jorge Castañeda (que passou de membro do Partido Comunista a ministro do governo reacionário de Vicente Fox Quesada) publicou uma coluna no The New York Times sob o título “A morte da Esquerda latino-americana”. Baseando-se nas derrotas eleitorais do kirchnerismo na Argentina e do PSUV na Venezuela, Castañeda decretou a “morte” – prestem atenção: não o declínio, nem o recuo, mas a morte – da esquerda latino-americana!

Nada poderia estar mais longe da verdade. O que experimentamos não foi um aumento significativo no apoio aos partidos políticos de direita, mas o que pode ser descrito com mais precisão como um colapso no apoio aos governos "progressistas" que estiveram no poder e agora foram confrontados com a gestão da crise do capitalismo. Na verdade, esses desenvolvimentos foram o resultado da incapacidade das políticas de “antineoliberalismo” de resolver os problemas fundamentais enfrentados pelas massas nesses países.

Isso levou à confusão e desmoralização entre um setor das massas. Mas as condições materiais concretas os levaram novamente à ação. Esses governos de direita foram incapazes de realizar suas políticas e enfrentaram oposição em massa desde o início. Foi o caso de Macri, Bolsonaro, Lenín Moreno, etc.

Talvez o caso mais claro seja o do governo Macri na Argentina. Quando tentou aplicar o ataque às pensões em dezembro de 2017, deparou-se com uma enorme onda de protestos e enfrentamentos que o levaram a abandonar a ideia de aplicar as contrarreformas trabalhistas. O governo Macri enfrentou cinco greves gerais e, não fossem as eleições de outubro de 2019, é possível que tivesse acabado sendo derrubado por um levante revolucionário.

No contexto da crise capitalista, os governos abertamente de direita e pró-imperialistas que substituíram os governos “progressistas” não conseguiram obter qualquer legitimidade. Pelo contrário, sua chegada ao poder preparou o caminho para outra onda de movimentos insurrecionais em todo o continente.

A partir de 2019, o que vimos não foi uma “onda conservadora”, mas sim insurreições em massa país após país. No Haiti, houve um movimento revolucionário de massas que durou vários meses. Em Porto Rico, em julho de 2019, vimos protestos em massa que paralisaram a ilha e forçaram a renúncia do governador. No Equador, em novembro de 2019, houve uma insurreição massiva contra o governo de Lenín Moreno que realmente colocou a questão do poder, já que o governo foi forçado a fugir da capital Quito. No Chile, de outubro a dezembro do mesmo ano, assistimos a um prolongado movimento que colocava em xeque toda a configuração política do país, estabelecida no final da ditadura de Pinochet, 30 anos antes.

Na Colômbia, vimos o massivo movimento grevista nacional (paro nacional) de novembro de 2019, e depois a greve nacional sem precedentes de abril-maio de 2021, que colocou o último prego no caixão do governo Duque e do uribismo que o apoiava.

Em todos esses movimentos, em um grau ou outro, a questão do poder foi colocada. A massa operária e camponesa, com a juventude revolucionária à frente, não se limitou a marchar de A para B para se opor a esta ou aquela política. Estamos falando de manifestações de massa, de confrontos com a polícia que deixaram dezenas de mortos, do país paralisado por greves e bloqueios de estradas, da organização da autodefesa, tudo levando a uma situação em que o principal slogan dos movimentos passou a ser a derrubada do governo existente.

O que faltou em todos e em cada um dos casos – vemos isso com particular clareza no Equador e no Chile, onde as coisas foram mais longe – foi uma liderança revolucionária plenamente consciente do que era necessário fazer: desenvolver as organizações embrionárias do poder dos trabalhadores que então surgiam mais ou menos espontaneamente (comitês de greve, cabildos abertos, assembléias populares, indígenas e guardas populares, a Primera Linea) em uma estrutura nacional composta por delegados eleitos e revogáveis a qualquer momento, e para que esta assembléia nacional dos trabalhadores tomasse o poder.

Como este fator crucial – o que os marxistas descrevem como o “fator subjetivo”, a liderança revolucionária – estava faltando, a classe dominante foi capaz de derrotar os movimentos. Fê-lo, não esmagando-os pela força, embora tenha havido certa repressão brutal como anteriormente mencionado, mas sim pelos meios parlamentares burgueses. Este foi o caso do Chile, onde o estallido foi desviado pelo canal parlamentar seguro de uma Convenção Constituinte convocada pelas estruturas existentes do Estado capitalista. Assim que as massas saíram das ruas, a classe dominante partiu para uma contraofensiva.

Na Colômbia, a falta de uma liderança nacional clara para o paro nacional de 2021 fez com que o movimento se dissipasse e, eventualmente, as massas buscassem uma solução na arena eleitoral, por meio da eleição de Gustavo Petro em junho de 2022. No Equador, a eleição do banqueiro Lasso ao poder em 2021, por margem mínima e apenas por causa da divisão das forças que contavam com o apoio de trabalhadores e camponeses, abriu o caminho para uma nova greve nacional em junho de 2022. Nada foi resolvido.

Na Bolívia, a derrubada do governo de Evo Morales em 2019 durou pouco. A heroica resistência das massas não permitiu que a oligarquia reacionária se estabelecesse firmemente no poder. Em um ano, novas eleições levaram Arce, do MAS, à presidência.

A natureza da nova “onda progressista”

O que está sendo descrito como a “nova onda progressista” na América Latina é o resultado dessa situação. São governos variados, cada um com suas características.

Boric no Chile é talvez o mais direitista de todos. Partindo da posição da “esquerda” pós-moderna, obcecada por questões de identidade em oposição à classe, e por símbolos em vez das condições materiais, Boric moveu-se rapidamente para a direita. Um governo que prometia a autodeterminação do povo mapuche acabou por militarizar o Wallmapu e prender os líderes das organizações radicais mapuche.

Um governo que chegou ao poder prometendo uma profunda reforma da odiada força policial de carabineiros, acabou por aprovar uma lei que consagra a impunidade dos policiais quando usam armas contra civis. Desde o início, Boric foi franco em seu apoio aos interesses gerais do imperialismo norte americano na região e internacionalmente (atacando a Venezuela em particular).

Na Argentina, temos um governo que é uma coalizão instável entre duas alas do histórico movimento peronista. Alberto Fernandez representa uma ala mais voltada para a classe dominante, enquanto Cristina Fernandez representa o kirchnerismo, que se afirma como uma corrente “popular nacional” e tem raízes mais profundas entre a classe trabalhadora e os pobres. Mas, no final das contas, diante de uma profunda crise econômica, de fuga de capitais, de alta inflação e ameaça de calote da dívida, esse governo fez um acordo com o FMI que o vincula a uma política de austeridade fiscal (isto é, fazer com que os trabalhadores assumam o ônus da crise capitalista). Apesar dos protestos e dos gestos demagógicos, os kirchneristas são corresponsáveis por esta política anti-classe trabalhadora.

O governo de Lula no Brasil começa onde terminou o de Dilma em termos de sua guinada à direita. Este é, novamente, um governo de colaboração de classes e unidade nacional. A escolha do vice não foi acidental: Alckmin é um dos principais representantes políticos da classe dominante. Mas, ao chegar ao poder, Lula fez todos os tipos de acordos com partidos burgueses no Congresso e no Senado, e seu próprio gabinete inclui até bolsonaristas.

México

López Obrador, eleito em 2018 no México, oferece um exemplo muito claro das ideias dominantes por trás desses governos. Ele argumentou que os problemas enfrentados pelo México se devem à corrupção, à burocracia e à má administração. E ele protestou contra o neoliberalismo e defendeu o desenvolvimento do capitalismo nacional. Desde que chegou ao poder, ele implementou consistentemente seu programa, que permanece dentro dos limites do capitalismo, cortando os salários de funcionários de alto escalão, lutando contra a evasão fiscal e, em geral, tentando implementar uma abordagem mais frugal da burocracia estatal.

Superficialmente, seu programa parece estar funcionando. Ele implementou uma ampla gama de programas sociais voltados para as camadas mais pobres da sociedade, além de realizar uma série de projetos de infraestrutura de alto nível. Mas, na realidade, seu governo se beneficiou de uma combinação particular de fatores econômicos que não podem realmente durar: altos preços do petróleo; investimento estrangeiro de empresas americanas trazendo de volta parte de sua produção da China após o choque da COVID-19 nas linhas de abastecimento; e, como resultado disso, um peso [moeda mexicana -NdT] forte.

Ao contrário dos países da América do Sul que estão mais ligados à economia chinesa, o México é muito dominado por seu poderoso vizinho do norte. Assim que a recessão começar nos Estados Unidos, a economia mexicana será duramente atingida, e a tentativa de implementar reformas limitadas e um programa de desenvolvimento nacional dentro dos limites do capitalismo se mostrará o que é: um sonho impossível.

Também no caso do México, o governo de López Obrador trabalhou para restabelecer a legitimidade das instituições burguesas maculadas por décadas de governos corruptos, fraude eleitoral e repressão estatal.

Peru

Vale a pena estudar em detalhe o caso do Peru. Aqui, a eleição de Pedro Castillo em julho de 2021, como candidato do Peru Libre, foi um grande ponto de virada. Representava a aspiração das massas de romper com o passado, com o legado da ditadura de Fujimori, suas políticas ultraliberais e os 20 anos em que todos os presidentes eleitos as traíram.

Embora Peru Libre se autodenomine um partido marxista, leninista e mariateguista, suas políticas são, na verdade, uma regurgitação da velha política de dois estágios do stalinismo. O programa do partido fala de uma “economia popular com mercados”, na qual reine o poder das multinacionais e se incentivem os “negócios produtivos”. O próprio Castillo, embora não filiado ao partido, fez campanha sob o lema “nunca mais pobres em um país rico”, prometendo renegociar os contratos com as multinacionais mineradoras (e caso elas se recusassem, expropriá-las), nacionalizar o gás e usar os recursos para fornecer educação, saúde, moradia e empregos para todos.

Este programa, por mais limitado que fosse, colidiu frontalmente com os interesses da oligarquia capitalista e das poderosas multinacionais mineradoras (do Canadá, Estados Unidos, China e Grã-Bretanha), apoiadas pelo imperialismo. Desde o primeiro dia de sua presidência, Castillo sofreu enorme pressão, foi submetido a uma campanha de demonização por parte da altamente concentrada mídia capitalista do Peru e enfrentou constantes sabotagens do Congresso, dominado pela oligarquia. Ele então passou a fazer concessões (removendo o ministro das Relações Exteriores, depois o primeiro-ministro, depois o ministro do Trabalho) e diluindo seu programa (em relação às multinacionais de mineração e gás).

Longe de apaziguar a classe dominante, no entanto, suas concessões foram vistas como sinais de fraqueza que convidavam ainda mais agressões, ao mesmo tempo em que enfraqueciam seu apoio entre os trabalhadores, camponeses e pobres. Finalmente, em dezembro de 2022, com apenas 16 meses de mandato, a oligarquia capitalista (com autorização da embaixada dos Estados Unidos) deu um golpe e jogou Castillo na prisão.

A resposta das massas foi heroica e exemplar. Durante dois meses, elas ocuparam as ruas, organizaram greves de massa e marcharam na capital Lima, desafiando a repressão brutal do regime de Boluarte, que usou a polícia e o exército contra manifestantes desarmados, matando mais de 60 (uma contagem conservadora).

A principal lição do governo Castillo é que mesmo um programa moderado e limitado de reformas colocará qualquer um que tente realizá-las (e Castillo recuou de seu próprio programa desde o primeiro dia) em rota de colisão com a classe dominante e o imperialismo. Eles não hesitarão em usar todos os meios à sua disposição (a mídia, as redes sociais, a opinião pública burguesa, o judiciário, o aparato do Estado e, em última análise, a polícia e o exército) para minar tal governo e eventualmente, caso necessário, derrubá-lo. Apesar de sua moderação, Petro na Colômbia também está enfrentando exatamente uma campanha semelhante.

A atitude da oligarquia capitalista e do imperialismo

A atitude da classe dominante e do imperialismo em relação aos governos desses países é mista. Por um lado, os capitalistas querem “estabilidade para conduzir os negócios” (ou seja, para explorar os trabalhadores e camponeses). Na medida em que esses governos são capazes de fornecê-la, eles adotam uma visão pragmática e estão preparados para tolerá-los.

Por outro lado, esses governos foram, de uma forma ou de outra, levados ao poder pelas aspirações das massas de trabalhadores e camponeses por uma vida melhor. Apesar de seus programas moderados, a oligarquia capitalista governante particularmente reacionária na América Latina não pode permitir qualquer desafio ao seu poder, riqueza e privilégio, por mais limitado que seja (Deus nos livre de pagar impostos!, por exemplo).

Políticos como Gustavo Petro na Colômbia, portanto, embora não sejam exatamente um cabeça quente revolucionária, estão enfrentando uma campanha constante de demonização na mídia e estão sendo minados por conspirações de setores do aparato estatal e, em alguns casos, por tentativas de mobilizar camadas da classe média contra eles. Vimos desenvolvimentos semelhantes no México. Petro, López Obrador e outros são acusados de serem “Castro-chavistas”, comunistas ou coisa pior. Imaginem só! Em seu discurso de vitória após vencer a eleição na Colômbia, Gustavo Petro disse abertamente: “desenvolveremos o capitalismo”. Durante sua campanha eleitoral, ele chegou a assinar um documento juridicamente vinculativo comprometendo-se a não realizar quaisquer expropriações.

O problema é que no período de decadência senil do capitalismo, nos países dominados pelo imperialismo, é impossível realizar qualquer tipo de desenvolvimento nacional, ou de satisfazer as necessidades prementes das massas por moradia, trabalho, educação, saúde e previdência, sem invadir a propriedade dos latifundiários, banqueiros, capitalistas e multinacionais. Como revelado no Peru, mesmo a exigência de renegociar contratos de mineração para aumentar impostos e royalties é anátema para os vampiros sugadores de sangue das multinacionais de mineração.

Se esses governos são, por um período de tempo, fortes demais para serem derrubados, os capitalistas estão dispostos a aceitar a situação e aguardar seu momento, ao mesmo tempo em que usam todos os meios à sua disposição para miná-los. Uma vez que tenham sido desacreditados e não sirvam mais ao propósito útil de embalar as massas na passividade, então eles são descartados, por qualquer meio necessário.

Obviamente, por trás da atrasada oligarquia local – uma classe dominante particularmente desprezível, permeada por um profundo ódio e medo das massas, combinado com um racismo arraigado – está o imperialismo norte americano, que sempre considerou o continente como seu quintal. Desde a proclamação da doutrina Monroe em 1823 (“América para os americanos”), Washington ab rogou o direito de remover e derrubar governos que não são do seu agrado. Como disse certa vez o criminoso Henry Kissinger: “Não vejo por que precisamos ficar parados vendo um país se tornar comunista devido à irresponsabilidade de seu povo. As questões são importantes demais para que os eleitores chilenos decidam por si mesmos”. Isso resume a verdadeira atitude do imperialismo dos EUA em relação à democracia burguesa.

Tornou-se moda nos círculos progressistas da América Latina falar sobre “lawfare”, isto é, a prática de se usar o judiciário para minar e remover ‘governos progressistas’. Isso pode ser visto, por exemplo, na investigação da Lava Jato no Brasil, uma operação politicamente motivada para destruir o PT e desmoralizar a classe trabalhadora, usando a corrupção como um aríete conveniente.

A investigação quebrou todas as regras da legalidade burguesa. Isso não importava. O objetivo principal foi alcançado: Lula foi impedido de concorrer (e preso), o PT foi completamente desacreditado e o juiz Moro tornou-se ministro do governo Bolsonaro. Métodos semelhantes foram usados em 2016 para provocar o impeachment de Dilma Rousseff, sucessora de Lula como presidente do país pelo PT.

Agora vemos um desenvolvimento semelhante na Argentina, onde o judiciário tomou medidas para impedir Cristina Kirchner de concorrer às eleições. O objetivo, novamente, é claro: afastar uma política que, apesar de seu programa burguês, mantém vínculos com as massas e às vezes usa de linguagem demagógica contra o FMI, o que pode se tornar perigoso. Processos judiciais também foram usados contra o equatoriano Rafael Correa e outros.

Mas, pode-se descrever isso como “lawfare” envolvendo o uso indevido do judiciário? E é isso realmente um fenômeno novo? Só se pode tirar a primeira conclusão se assumirmos que o judiciário é um órgão independente e imparcial. Na realidade, não existe um “estado de direito”, acima e além dos interesses da classe dominante. A justiça em uma sociedade burguesa sempre foi justiça de classe, em benefício dos capitalistas.

Claro, para que essa ficção funcione, na maioria dos casos as regras são seguidas. Mas a classe dominante nunca se esquivou de dobrar ou quebrar suas próprias regras, se necessário, para defender sua riqueza e propriedade. Não há nada de novo no “lawfare” então. E o uso mais aberto do judiciário baseado em classes para defender os interesses da podre oligarquia capitalista deve ser usado, não para exigir um sistema judiciário genuinamente "justo", que não pode existir em uma sociedade dividida em classes, mas sim para expor o caráter real do chamado “estado de direito”.

A primeira e a segunda “ondas progressistas”

O caráter desses governos – que no seu conjunto são muito mais fracos, mais dóceis e, em geral, mais reacionários em suas políticas do que os da “onda progressista” anterior – é determinado pelo fato de que eles não podem contar nem com o limitado espaço de manobra que a primeira onda desfrutou em 2005-15. A situação econômica na América Latina é de terrível crise capitalista. A região foi a mais afetada no mundo pela pandemia, tanto pelo número de mortos quanto pelo impacto socioeconômico. Nos dez anos até 2023, o PIB da região cresceu em média 0,8%, o que se você levar em conta o crescimento populacional significa um declínio, em vez de estagnação. A título de comparação, durante a década perdida de 1980, o crescimento médio foi de 2%.

Comentando esses números, José Manuel Salazar-Xirinachs, chefe da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (CEPAL), disse: “Isso é terrível, isso realmente deveria ser um grande sinal vermelho”.

Em vez de um “super-ciclo” de preços altos de commodities como o que a onda anterior de “governos progressistas” desfrutou, agora enfrentamos um período de crise capitalista global, agravada pela forte desaceleração da economia chinesa, o recuo da globalização etc. Os países da América Latina, completamente integrados e dependentes do mercado mundial, sofrerão uma dor particular.

Isso não quer dizer que não possa haver contracorrentes temporárias. Atualmente, há uma alta demanda por alguns minerais relacionados à transição para veículos elétricos (lítio); alguns países se beneficiaram dos altos preços da energia impulsionados parcialmente pela guerra na Ucrânia e pelas sanções contra a Rússia; o México recebeu investimentos de empresas norte-americanas “quase escorando” sua produção para longe da China. Todos esses fatores são limitados em seu impacto e limitados no tempo. A recessão mundial que se aproxima provocará uma forte contração da demanda por matérias-primas, minerais e fontes de energia, das quais dependem as economias latino-americanas.

Essa nova “maré rosa” ou “onda de governos progressistas” – como quisermos chamá-los – certamente não será mais forte que a primeira. Pelo contrário. De início, enfrentará uma grave crise do capitalismo e será obrigada a implementar medidas antioperárias. As massas não permanecerão passivas. Um governo eleito pelas massas, e no qual estas investiram ilusões de mudança, pode naturalmente provocar um certo período de desilusão ou desmoralização quando leva a cabo políticas a favor da classe dominante. Mas tão inevitavelmente quanto a noite segue o dia, trabalhadores e camponeses serão estimulados a agir na tentativa de defender suas condições de vida e reverter os ataques.

Em outras palavras, mesmo as tarefas nacionais e democráticas da revolução que estão pendentes em diferentes graus em diferentes países latino-americanos, só podem ser plenamente realizadas pela derrubada do capitalismo e pela chegada ao poder da classe trabalhadora à frente de todos os camadas oprimidas da sociedade. Dentro dos limites do capitalismo, nenhum desses problemas pode ser resolvido. Esta conclusão, que pode ser extraída na prática da experiência das últimas décadas e mesmo dos dois séculos desde a independência das nações latino-americanas, é a mesma formulada por Trotsky em sua teoria da revolução permanente.

Essa foi a política da Primeira Internacional Comunista Leninista com relação à América Latina. A mesma política foi formulada por comunistas latino-americanos como o peruano José Carlos Mariategui e o cubano Julio Antonio Mella na década de 1920. Somente a revolução socialista pode começar a resolver os problemas de atraso, opressão nacional, reforma agrária, habitação, empregos, educação e saúde enfrentados por milhões de trabalhadores e pobres neste rico continente. Isso significa a expropriação da minúscula e podre oligarquia capitalista de latifundiários, industriais e banqueiros, que estão amarrados por mil cordas à dominação do imperialismo.

A perspectiva para a América Latina, como para o mundo como um todo, é de turbulência e tensão, de grandes batalhas e convulsões revolucionárias. Uma e outra vez, a questão do poder será colocada. A tarefa mais urgente para os revolucionários em todo o continente é tirar as lições necessárias dos últimos 25 anos para se preparar para as batalhas que virão.

O capitalismo, em sua época de decadência senil, não pode ser administrado “melhor”, nem de forma que beneficie a massa trabalhadora. A luta não é contra o neoliberalismo, mas sim pela derrubada do sistema capitalista como um todo. Temos plena confiança na capacidade da classe trabalhadora de transformar a sociedade e tomar o futuro em suas próprias mãos. Precisamos urgentemente construir a liderança revolucionária necessária para levar a luta à vitória.

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